Não chore por mim, Argentina

Não faz muito tempo era preciso pescar na imprensa brasileira matérias sobre a América Latina, quando para os Estados Unidos bastava espirrar e viravam manchete. E nem podíamos dizer, como os mexicanos, que estávamos perto demais dos Estados Unidos e longe de Deus. Brasil é um dos maiores países católicos do mundo e perto, colada, estava a América do Sul, não a do Norte. Mas os brasileiros se esmeravam no inglês enquanto arruinavam o clássico espanhol (me duele las cuestas, duela lo que duela). Dos 12 vizinhos, a Argentina sempre foi o mais presente. Com o câmbio favorável, os portenhos invadiam o Brasil e não faltavam chargescheias de vitrines e a legenda “para os argentinos custa o dobro”.

Quando o vento soprava para o lado de cá, éramos nós os invasores e chamados de macaquitos pelos cucarachos. Esse vaivém nunca cessou nem nos espantou porque somos latinos e, no fundo, nos entendemos.

Nas últimas semanas estamos mais estreitos do que nunca, nas páginas, nas rádios, nas telas. O nosso comércio, que começou em 1587 com um bispo comandando a operação da caravela San Antonio, também tem a igreja católica no papel principal do bombardeio de notícias.

O papa trouxe a Argentina e os anos de chumbo de volta à imprensa. Na semana passada, a foto da revista Época de um contrito general Jorge Rafael Videla comungando estampava a manchete “Os padres e os generais – A cúpula da Igreja argentina é acusada de ter colaborado com a sangrenta ditadura militar”. A Veja da mesma semana não poupou Francisco (“Ele lavou as mãos?”) e a CartaCapital desta semana traz três páginas de Eric Nepomuceno, “Francisco ou Pilatos – o papa foi no mínimo omisso no período mais tenebroso da ditadura militar”.

Ajuda providencial

A dúvida vai rolar e foi um timing perfeito o lançamento de Os Argentinos (Editora Contexto), do correspondente da Globonews e do Estado de S.Paulo em Buenos Aires, Ariel Palacios, no mesmo dia em que o Jorge Mario Bergoglio era escolhido papa na derrubada do brasileiro dom Odilo Scherer.

Primeiro, o livro relata a violência da ditadura argentina que deu sumiço em 30 mil pessoas entre 1976 e 1983, incluindo brasileiros. Um deles, o músico Tenório Junior, exímio pianista que desapareceu em 1976 depois de um show com os portenhos honorários Vinicius de Moraes e Toquinho, no tradicional Teatro Rex. O músico teria deixado um bilhete aos colegas no hotel Normandie dizendo que ia comprar sanduíche, remédios e voltaria logo. Nunca mais foi visto. Tenório pode ter sido atirado vivo de um avião nas águas do Atlântico, no rio da Prata, como se fazia com os “terroristas” com os quais o músico barbado teria sido confundido. Ou dinamitado, amarrado, como era comum aos prisioneiros. E enterrado junto com corpos torturados em cemitérios clandestinos.

Tudo poderia acontecer num país onde a ditadura matava mulheres que davam à luz na prisão e entregavam os bebês a militares sem filhos. As torturas descritas no livro de Palacios são semelhantes às que nossos militares praticavam no mesmo período: choques elétricos, “submarino” para afundar a cabeça dos presos em tinas com excrementos, rato enfiado no colón dos homens ou na vagina das mulheres, estupros com direito a escolha por choques na vagina, esfolamentos, empalamentos.

Mais ousado do que nós, o cinema argentino recebeu o primeiro Oscar em 1985 e só pôde ser visto na Europa ou Estados Unidos. A História Oficial,de Luis Puenzo, narra a violência e o crime do roubo de bebês pelos militares. Mais tarde vieram Kamachatka,de Marcelo Pineyro (2002), O Dia em Que Não Nasci (2010), alemão, de Florian Cosen, e uma coleção de relatos ficcionais ou não que levaram o general Videla e seus militares ao banco dos réus, condenados este ano a várias penas de prisão perpétua.

No país de maioria católica, a esquerda mais organizada contra a ditadura era representada pelos Montoneros, que reuniam reunindo marxistas, peronistas e católicos. Os militares alertavam contra o “inimigo” que era “ateu, pornográfico, protestante” e assim Igreja e Estado caminharam de mãos dadas no país vizinho. Logo após o golpe de 1976 houve um acordo com os militares: antes de prenderem um sacerdote ou freira, as Forças Armadas avisariam o bispo responsável – no caso, Bergoglio.

O declínio da igreja católica começou com a volta da democracia. Fica evidente o envolvimento ativo de parte do clero com a ditadura, Ariel Palacios escreve, e vai mais longe: “e a participação de clérigos em torturas a civis”. Isso, sem falar na omissão, que deu uma bela ajuda à ação militar.

“Líder poderoso”

A imprensa brasileira não deixou barato, Bergoglio vai ter de enfrentar o fantasma do passado, mais um que a Argentina guarda do armário. Lá estão Carlos Gardel, morto em 1935 e que, segundo os argentinos, “canta cada vez melhor”; Juan Domingo Perón, “o morto mais vivo da Argentina”; Evita Perón, morta em 1952, que virou santa no túmulo do cemitério da Recoleta; Che Guevara, “como Rambo pero bueno” e Jorge Luis Borges, que caminha pelas ruas em forma de cartazes gigantes de papelão recortado. Vivo está Maradona, chamado alternadamente de Dios e Diez do “fúlbo”, bajulado pelo mesmo Videla porque os militares – como os generais Médici e Figueiredo no Brasil – sempre viram um caminho nos ídolos das massas.

Bergoglio terá de enfrentar a realidade. Dos 76% da população batizada na Argentina, apenas de 6% a 9% são praticantes, contra 12% de evangélicos praticantes e mais de 11% de ateus. E crescem os santos populares na mesma medida em que a igreja católica reduz a influência entre os fiéis.

Ao contrário dos brasileiros, os argentinos encaram a realidade, como na escavação dos anos de chumbo até o limite da condenação dos culpados; vivem tanto a realidade que pedem “agora queremos promessas”. O povo argentino é especial, o país tem menos de 4% de analfabetos e os 37 milhões de habitantes são vistos de forma tão distinta no resto da América Latina que o genial colombiano Gabriel. García Márquez costumava dizer que “o ego humano é um pequeno argentino que todos trazemos dentro de nós”.

Povo eclético. Depois da Segunda Guerra o país mesclava nazistas refugiados e uma casa conservada em Bariloche para ser mostrada a turistas como residência de Hitler e Eva Braun. Mas o país católico integrava uma imensa população judaica ao mesmo tempo em que crescia o antissemitismo, como cresce até hoje.

Oposição mesmo, a igreja não fez a outros cultos, como fez ao tango, para ela erótico e satânico, e ao casamento gay, ao aborto e à pílula anticoncepcional. Mas neste momento de impasse político, quem quer saber de oposição? Agora vale tudo para ganhar as graças do papa e Cristina Kirchner busca ligar Francisco ao peronismo – duas forças compartilhando o mesmo mito. “O da grande pátria popular rendida a um líder poderoso”, como escreveu na Folha de S. Paulo (25/4/2013) o sociólogo italiano Lóris Zanatta, autor de Peron e o Mito da Nação Católica

Na CartaCapital, Eric Nepomuceno estranhava a sequência. Ratzinger foi na adolescência integrante da Juventude Hitlerista e Bergoglio membro da Guardiã de Hierro, a extrema direita das ideologias formadoras do peronismo.

Espartano e agradável

Não há provas contra Bergolgio, como outros clérigos acusados de apoiar os voos da morte por ser “mais humano” – os prisioneiros atirados dopados ao mar. Bergoglio afirma não ter tido na época conhecimento do roubo de bebês nos cárceres clandestinos. Mas familiares de presos políticos afirmam ter procurado em vão o seu apoio. E Bergoglio, segundo a CartaCapital, negou que nos arquivos do episcopado houvesse qualquer documento relacionado a sequestros ou assassinato de militantes políticos, religiosos ou não – quando os documentos eram fartos. Pelos menos dois bispos foram assassinados, Enrique Angelelli e Carlos Ponce de León. E suspeita-se que Bergoglio, principal líder dos jesuítas, tenha entregado dois padres da congregação.

Se o papa não atuou intensamente ao lado dos ditadores, pelo menos avisou à Marinha que havia retirado a proteção de dois jesuítas que faziam trabalho de caridade em favelas vizinhas do bairro de Flores, em Buenos Aires. Orlando Yorio e Francisco Jalics foram torturados durante seis meses antes de Bergoglio pedir a libertação dos sacerdotes, instruindo as paróquias a não aceitá-los. Jalics foi para a Alemanha no fim de 1976 e não conseguiu retornar à Argentina. “O próprio padre Bergoglio escreveu uma nota com especial recomendação de que seu pedido não seja atendido” – assim o diretor do Culto Católico do Ministério de Relações Exteriores, Anselmo Orcoven,recusou a renovação do seu passaporte.

O primeiro papa latino-americano, um homem humilde, espartano e agradável, terá que responder a perguntas mais espinhosas do que a pedofilia e a corrupção no Vaticano.

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Norma Couri é jornalista

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