Xícara de porcelana – Clic Folha – Tem tudo que é daqui!

(Texto desenvolvido a partir de escrito em rodapé de edição de “Seleções”)

Confesso não possuir tendência para atitudes de abelhudo. E sempre optei por ter um comportamento mais solidário em relação aos meus próximos. Lembro-me de um dia em que estava em uma fila dos correios e, à minha frente, estar uma senhora da terceira idade. E ela, como que conferindo os dizeres do telegrama que iria passar, permitiu que eu, numa espreita atrás de si, visse o conteúdo do mesmo à vontade. E por ser telegrama para a Argentina, ativei minha atenção no papel. Não foi tão difícil guardar nome e endereço da destinatária, bem como da remetente. Houve um detalhe que me ativou ainda mais a atenção, que foram os termos do telegrama: “Querida (nome da destinatária), felicito-a muito pela grande perda. (nome da remetente)”. Achei estranho, mas era extremamente difícil manifestar-me com aquela senhora, pois embora quisesse me solidarizar com ela, eu estava sendo abelhudo por ficar olhando seu telegrama. Por isso, quando a funcionária atendeu-me para uma carta registrada, comentei com ela que a senhora que me antecedera passara um telegrama de pêsames, colocando felicitações. Indaguei se a funcionária não poderia interceptá-la e chamar-lhe a atenção pelo engano. Quem sabe, por telegramas de casamento que costumasse passar, tenha colocado “felicito” no lugar de “sinto muito”. A funcionária respondeu-me que isso não lhe era permitido. O que fiz? Como havia memorizado os nomes e endereços, fui a outra repartição dos correios e passei um telegrama para a mesma destinatária: «Querida (nome da pessoa), perdoa-me o engano que corrijo a tempo. Lamento muito pela perda. (Nome da senhora)”

Poucos dias depois – pois ela fora aos correios e estivera com a funcionária com quem passara o telegrama, e que não me conhecia – a senhora colocou um anúncio no jornal, com base no que lhe contara a funcionária sobre o meu ato. Ela anunciava a vontade de entrar em contato com quem passara o telegrama em seu nome. Não vi esse anúncio, mas vi um segundo, noutra edição, em que a senhora insistia em se comunicar com a pessoa que passara telegrama em seu nome. Percebi que era meu ato; temi ser punido pela afronta de abelhudo. Persegui os anúncios. Logo saiu outro, clamando a que o autor telefonasse de um orelhão, se estivesse com receio de ser identificado. E que se pretendia dar um presente – uma xícara de porcelana chinesa, antiga e raríssima – ao autor do telegrama. Eu não conseguiria levar minha vida nesse estado de coisas com a opção por não fazer a ligação. Agira com atrevimento e ainda queriam me presentear? Procurei um orelhão em horário apropriado e liguei para número que fora colocado no terceiro anúncio. Atendeu-me outra pessoa e pedi-lhe que chamasse dona (nome da senhora). Ela atendeu, e eu fui logo tentando apaziguar as coisas, pois meu ato fora de... Ela interrompeu-me, acalmou-me e disse-me que se eu não quisesse me identificar, não haveria necessidade. Tão somente que combinasse com ela, como fazer para me apossar da xícara de porcelana, herança de antiga ascendente e que ela se prometera dar à primeira pessoa que tivesse um ato solidário para com ela. O que ocorrera com relação a mim.

Eu, muito sem graça, tentei explicar-lhe meu ato, desculpando-me por ter sido abelhudo e que tentara, antes, que lhe fosse chamada a atenção pela funcionária que recebera o telegrama. Ela se impôs a que eu não sentisse qualquer constrangimento e relatou-me o que a servidora dos correios lhe passara sobre minha preocupação e o quanto sua amiga da Argentina já rira do acontecido; e o quanto ela também já fizera. Fiquei embaraçado: dei uma de abelhudo, a outra, que perdera um parente, achou graça de tudo; amiga da Argentina de luto e a senhora do telegrama rirem do acontecido! “Estarei tendo alucinação?”, indaguei à senhora. “Nada disso, meu amigo solidário. O problema é que minha amiga da Argentina iniciou um regime de emagrecimento por pesar cento e dezessete quilos. E mandou-me um telegrama contando ter perdido vinte e dois quilos. Eu apenas lhe passei outro telegrama, felicitando-lhe pela perda.”

A xícara de porcelana chinesa foi-me entregue, com um abraço da senhora, e está bem guardada entre meus pertences raros e mais afetivos. Enquanto a tiver comigo, estarei compromissado a ser, sempre que possível, solidário para com os outros. Mesmo que meu ato seja motivado por algo que eu veja pelo buraco de uma fechadura.  

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