Livro da antropóloga Pilar Calveiro resgata os mecanismos da ditadura platina para exterminar seus opositores
O "inferno" de Pilar Calveiro começou em maio de 1977. Ela foi sequestrada e sobreviveu por um ano e meio em um dos campos de concentração criados pelo estado argentino. Como resultado teve o corpo e a alma ultrajados. Sua história está longe de ser um caso isolado. Atrocidades semelhantes foram vivenciadas pelos presos políticos da ditadura platina - um número impreciso entre 15 mil e 20 mil pessoas. Destes, cerca de 90% desapareceram, tendo passado antes por um dos 340 campos de concentração existentes naquele país, de 1976 e 1982.
O escritor Rodolfo Walsh, opositor do regime militar, foi um dos desaparecidos mais famosos
Em "Poder e desaparecimento - Os campos de concentração na Argentina", a professora e pesquisadora na Universidade Autônoma de Puebla constrói um retrato em cores vivas da último regime ditatorial argentino (1976-1983). O foco é sua eficiente máquina de eliminar opositores, valendo-se de métodos violentos. O livro conta ainda com textos do poeta e jornalista argentino Juan Gelman e das historiadoras Janaína de Almeida Teles e Maria Helena Rolim Capelato.
Recompor-se
A luta de Pilar para recompor o corpo e a subjetividade começa com uma revisão de sua história. O trajeto inicia com sua captura pelas forças do poder sem limite que vigorava na Argentina. À época, perdeu quase tudo. Inclusive o nome: ganhou, no lugar, o número 362. Despojada até mesmo do próprio corpo, que passou a ser objeto de tortura, ao ingressar na "Mansão Seré", um centro presidiário clandestino para onde foi levada depois de ser raptada por um comando da Aeronáutica.
Sua narrativa é marcada pelo humanismo, num texto leve, porém denso. Tanto pelos relatos das situações desumanas vivenciadas pelos prisioneiros dos campos de concentração argentinos quanto pela forma velada com que os algozes usaram para desaparecer com os corpos.
Nos dias das transferências, conta Pilar Calveiro, os prisioneiros vivenciavam um misto de tensão e medo, já que as chances de sobreviver eram mínimas. Ali, os corpos não passavam de "encomendas".
Muitos preferem viver sob o signo da ilusão, afirma a antropóloga, numa constatação comovente, ao falar dos familiares de desaparecidos do regime militar argentino. Alguns se recusam a identificar os restos mortais ou cobrar do Estado uma posição, preferindo viver o sonho de que, um dia, o filho ou a filha poderá voltar para casa. Mas, pelos relatos de Pilar Calveiro, que sentiu na pele a degradação da tortura, estes sequer poderão enterrar os seus mortos. Muitos corpos foram jogados ao mar. O pior de tudo é que os torturadores aplicavam sonífero em suas vítimas, o que significa que afundavam nas águas ainda vivos. Os prisioneiros pensavam estar recebendo vacina. Na verdade, estavam sendo preparados para engrossar a lista dos mortos anônimos, vítimas das chamadas "operações limpeza".
O livro toca em outro ponto, no mínimo, delicado: a situação dos sobreviventes. Sem entrar no mérito de delator ou de herói, a autora prefere admitir que os campos de concentração argentinos são um recorte da sociedade. Nessa perspectiva, não existem heróis, vencedores ou vencidos. "O campo é uma infinita gama, não cinza - que supõe combinação de branco e preto -, mas de diferentes cores, e sempre uma gama em que não aparecem tons nítidos, puros, e sim múltiplas combinações". A autora destaca a multiplicidade desses locais, uma vez que eram formados por pessoas de diversos setores da sociedade. "Ninguém pode permanecer nele puro ou intocado, o que revela a falsidade de muitas versões heroicas. No mundo dos campos, ninguém pode atribuir a si mesmo a inocência pura e nem a culpa absoluta". No caso dos prisioneiros que conseguiram se salvar, geralmente, eram vistos ´como suspeitos´", pontua.
Vencedores/ perdedores
A versão de vencidos e de vencedores também cai por terra. Não eram tons de cinzas, mas gamas e nuances de muitas cores. Até porque, aos poucos, a partir da reestruturação democrática nos países do Cone Sul, os conhecidos "vencedores" passaram a ir parar no banco dos réus, sendo julgados pelos "vencidos". A publicação da obra em português acontece no momento em que foi instalada a Comissão da Verdade no Brasil. Sua leitura serve para mostrar alguns pontos de convergência entre os dois momentos vividos na Argentina (1976-1983 ) e no Brasil (1964-1985).
O sequestro de adolescentes e de crianças foram verificados na Argentina. Pilar Calveiro relata que, algumas crianças nascidas nos campos de concentração acabaram adotadas por militares, havendo casos em que algumas foram recuperadas pelos familiares dos militantes políticos.
Ilegalidade
Um relato feito na terceira pessoa. Essa foi a opção de Pilar Calveiro ao tomar como ponto de partida o inferno que viveu, em mais de um ano, em que esteve à mercê de um poder absoluto, esquizofrênico, materializado nos campos de concentração. Embora não fossem reconhecidos legalmente - isso dificultou e continua dificultando a punição dos criminosos - torturavam, matavam e sumiam com os corpos sem deixar rastros. Poucos resistiam às atrocidades. Jovens, estudantes e sindicalistas eram os principais alvos. Presos, torturados e debilitados, os prisioneiros eram reduzidos a meros corpos, oferecendo pouca resistência. O que é capaz de fazer um corpo apanhado, sofrido, faminto e sedento? Os torturadores apostavam nessa condição, esquecendo de um ponto importante: o poder de resistência.
Pilar Calveiro é um exemplo dessa resistência. E mais do que contar uma história, relatar sua experiência pessoal ou dos seus companheiros, a autora analisa o que representou o último regime civil-militar argentino, não apenas para o seu povo, estendendo sua análise para as ditaduras dos países do Cone Sul também. A leitura das 152 páginas da obra, dividida em 20 tópicos, proporciona um mergulho em um dos mais controversos capítulos da recente história da Argentina. Impossível não ampliar o relato, estendendo ao Brasil e os demais países da América do Sul, que passaram por situação semelhante.
Ao falar sobre o contexto sociopolítico da Argentina, na época do golpe, Pilar Calveiro diz que a "sociedade estava esgotada", fazendo comparação com o estado em que os desaparecidos chegavam aos campos de concentração. Ali, viravam "pacotes" ou "encomendas" com destinatário certo: o mar ou os cemitérios clandestinos. No início da repressão, os mortos eram jogados na rua, muitas vezes, simulando atropelamentos ou suicídios. Depois, a ordem era não deixar rastros, daí o mar servir de túmulo. Para Pilar Calveiro, "não há poder sem repressão, mas, mais do que isso, é possível afirmar que a repressão é de fato a alma do poder". Nos campos, os prisioneiros não tinham poder sobre os próprios corpos, sendo impedidos de tirar a vida, "direito" dos torturadores.
E quando o pode se torna absoluto, as consequências para a sociedade são imprevisíveis, sendo criados campos de espaços de concentração, semelhantes aos da Alemanha nazista. Somente a entidade Mães da Praça de Maio denuncia o desparecimento de 30 mil prisioneiros. Vítimas de uma máquina de morte cujas engrenagens era o regime militar, seus braços clandestinos, e colaboradores de diversos setores da sociedade, com a própria Igreja Católica.
LIVRO
Poder e desaparecimento: Os campos de concentração na Argentina
Pilar Calveiro
Boitempo
2013, 192 páginas
R$ 38
IRACEMA SALES
REPÓRTER