Qual será o caminho da Argentina?

Mais uma vez, os pesquisadores foram surpreendidos por resultados fora da margem de erro. Daniel Scioli, o candidato do kirchnerismo, parecia a caminho de ganhar a eleição no primeiro turno, pois isso na Argentina exige apenas 45% dos votos, ou 40% com 10% de vantagem sobre o segundo colocado. As últimas pesquisas indicavam, em média, pouco mais ou menos de 40% para Scioli, 28% para Mauricio Macri e 21% para Sergio Massa.

O próprio Jorge Lanata, colunista e apresentador do Grupo Clarín e o mais influente jornalista de oposição do país, jogou a toalha em entrevista ao El País de 9 de outubro: “O fato de Massa e Macri terem se apresentado separadamente está permitindo aos peronistas ganhar. A oposição não conseguiu articular uma proposta interessante. Apresentou-se dividida, com discussões muito miseráveis, pequenas, sobre cargos e listas (de candidatos)”.

Ao serem contados os votos da eleição do domingo 25 constatou-se, porém, uma vantagem de meros 2,6% para o candidato governista: 36,9% a 34,3% de Macri, candidato da frente de oposição dominada pela direitista Proposta Republicana (PRO), com apoio da velha UCR e da teoricamente esquerdista Coalizão Cívica, de Elisa Carrió.

Macri kirchnerizou: promete manter as estatizações e o "bolsa-família"/ Emiliano Lasalvia/AFP

O peronista dissidente Sergio Massa logrou 21,3%, a Frente de Esquerda trotskista obteve 3,3% para seu candidato Nicolás Caño, os “Progressistas” tiveram 2,5% com a socialista Margarita Stolbizer e o “Compromisso Federal” liberal conseguiu 1,7% com Adolfo Rodríguez Saá. Em 22 de novembro, a eleição presidencial argentina terá pela primeira vez um segundo turno, com resultado por ora imprevisível.

Nas primárias de 9 de agosto, o pré-candidato único do kirchnerismo teve 38,4% dos votos válidos, enquanto todos os pré-candidatos da aliança de Macri somaram 30,1% e os da aliança de Massa, 20,6%.

A participação foi de 80,9%, ante 72,4% nas primárias, com um número menor de brancos e nulos (3,1% ante 5,5%). Uma forma de interpretar o resultado é que Macri teve mais sucesso em capturar os votos dos céticos ou menos politizados que não se deram ao trabalho de votar nas primárias e apareceram nas pesquisas como indecisos. Por quê?

Com alta inflação maquiada pela manipulação de índices, balança comercial cronicamente desequilibrada e a pressão dos fundos abutres dificultando o acesso ao financiamento internacional, a economia argentina não vai bem, mas não houve piora significativa nos últimos meses. Também não é novidade a autopromoção de Cristina Kirchner, com praticamente uma entrada em cadeia nacional por semana.

Mais problemática foi provavelmente a atitude da sua militância a pregar aos convertidos em vez de tentar persuadir aqueles que, principalmente na classe média, começam a crer que a direita pode tirá-los da estagnação.

Massa, Stolbizer, Saá e Caño ficam para trás / Damian Dopacio/AFP, Maria Pirsch/Citizenside/AFP

Principalmente a partir de julho, quando Macri e seus aliados prometeram manter a Asignación Universal por Hijo, o “bolsa família” argentino, o Fútbol para Todos, distribuição gratuita pela tevê estatal dos campeonatos nacionais e sul-americanos, a estatização da YPF e das Aerolíneas Argentinas e o enfrentamento dos fundos abutres, políticas populares que até então rechaçavam.

As inundações que em agosto castigaram a província de Buenos Aires, governada por Scioli, devem tê-lo prejudicado, assim como a repressão de sua polícia à manifestação feminista de Mar del Plata de 11 de outubro.  Ao contrário do que se deu na elitizada capital, onde Macri é prefeito e teve 50,6% dos votos para presidente, Scioli venceu na sua província, 37% a 33%, mas por uma margem menor que a esperada e sem conseguir fazer seu sucessor.

Foi a primeira derrota peronista para o governo da província de Buenos Aires em 50 anos. Para surpresa dos próprios macristas, o senador Aníbal Fernández, chefe de gabinete de Cristina Kirchner, perdeu para María Eugenia Vidal, a vice-prefeita de Macri.

A oposição também teve bons resultados em províncias do Pampa e da região central do país (Córdoba, Mendoza, Santa Fé, Entre Ríos deram vitória a Macri e San Luis a Saá), as mais desenvolvidas e menos dependentes do governo federal.

Com exceção de Jujuy, onde ganhou Massa, as demais províncias, ou seja, 17 do total de 23, continuaram a apoiar o governo. Isso inclui Santa Cruz, reduto da família Kirchner, onde Máximo, filho de Cristina, foi eleito deputado, e sua cunhada Alicia, governadora.

O Partido Justicialista perdeu a maioria na Câmara, mas ainda tem a maior bancada: de 133 deputados em 254, passou a 117 em 257. No Senado continua com uma folgada maioria: caiu de 43 para 42 senadores em 72.

Somando prováveis aliados, não seria difícil ao kirchnerismo obter maioria simples na Câmara e dois terços no Senado. Se Macri for eleito, lidará com um Legislativo hostil, mas para Scioli o quadro seria mais favorável do que para Dilma no Brasil.

As chances de isso acontecer ainda são difíceis de calcular, mas presumir que Macri é favorito porque a soma das oposições representa a maioria é certamente precipitado. Os eleitores de Massa e de Saá representam uma posição “centrista” em relação aos dois primeiros colocados e tendem a se dividir entre eles, assim como personalidades de seu partido.

Massa diz que não apoiará explicitamente a nenhum dos dois candidatos, mas seu ex-candidato a governador em Entre Ríos e uma de suas deputadas embarcaram na campanha de Scioli em nome da lealdade ao peronismo. Saá, sem dar apoio explícito ao governista, adverte sobre um provável ajuste de Macri: “Será que vamos continuar a gerar pobres? Eles vão fazer um ajuste, uma desvalorização e mais endividamento como já fizeram 20 vezes na história argentina?”

Inundações na província de Buenos Aires prejudicaram Scioli e elegeram governadora de direita

Marcos Brindicci/Reuters

A maioria dos eleitores da Frente de Esquerda talvez acate a orientação de sua liderança pelo voto em branco, mas muito poucos votarão em Macri. Assim como Marina Silva no Brasil, a ex-candidata dos “Progressistas” inclina-se para a direita em nome da “mudança”. Não necessariamente será acompanhada por todos os seus eleitores.

Se todos que depositaram votos válidos no primeiro turno voltarem a fazê-lo no segundo, Scioli precisará de 45,5% dos votos dos demais candidatos, enquanto Macri necessitará de 55,5%. Na primeira pesquisa para o segundo turno, da consultoria González y Valladares, Macri tem 45,6%, Scioli 41,5%, há 4,1% de votos em branco, quase metade dos quais da Frente de Esquerda, e 8,8% indecisos, na maioria eleitores de Massa.

Convém observar que essa consultoria foi a única a subestimar a votação de Scioli no primeiro turno (deu-lhe 35,4% ante 25,3% de Macri e 26,3% de Massa) e as primeiras pesquisas após o primeiro turno no Brasil concordavam em dar vitória a Aécio Neves por margens até maiores.

Além da campanha, muito pode depender do debate marcado para 15 de novembro, uma semana antes da eleição. Por confiar em uma folgada maioria, Scioli preferiu não debater no primeiro turno, no qual seria o alvo preferencial dos demais candidatos.

Se conseguir se diferenciar do adversário e for convincente como representante das maiorias e da tradição peronista contra uma proposta neoliberal e elitista – o que não deveria ser difícil, apesar de ele ter um perfil menos populista e mais próximo do empresariado que Cristina e o falecido Néstor Kirchner – pode sair vitorioso.

Seria certamente o melhor resultado para o Mercosul, a Unasul e a integração latino-americana e provavelmente também para a maioria dos argentinos, pois sua promessa de manter as políticas mais populares dos Kirchner é mais confiável do que a do adversário, para não falar na disposição de enfrentar o FMI e os fundos abutres.

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