Os líderes da Argentina e da Venezuela devem se reunir hoje numa conferência em Cuba para debater a independência de Porto Rico, num momento em que seus países enfrentam as crises mais graves dos últimos dez anos.
O fato de eles terem viajado para Havana — enquanto as moedas de seus países despencam e as incertezas sobre sérios problemas econômicos aumentam — parece ressaltar, para muitos argentinos e venezuelanos, o governo errático que economistas dizem ser a causa das dificuldades nos dois países.
Os governos da presidente argentina, Cristina Kirchner, e de seu colega e aliado venezuelano, Nicolás Maduro, desvalorizaram parcialmente suas moedas na semana passada, gerando temores na América Latina. O peso argentino sofreu sua maior queda desde que a Argentina decretou moratória, em 2001; a Venezuela enfrenta a escassez de produtos básicos.
Kirchner aterrissou em Havana na manhã de sábado, três dias antes do início da reunião de líderes da América Latina que tem o presidente cubano, Raúl Castro, como anfitrião.
"Fidel me convidou para almoçar", disse ela num comunicado divulgado na manhã de domingo, depois de ter almoçado com o líder revolucionário, que é irmão do presidente.
Kirchner e Maduro manifestaram apoio ao pequeno movimento de independência de Porto Rico, hoje um território autônomo dos Estados Unidos. Maduro disse que proporia que a ilha se tornasse o 34º membro da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, cujos países, incluindo o Brasil, estão se reunindo em Havana para discutir questões diplomáticas e comerciais.
"Porto Rico não está sozinho na sua luta por identidade, por dignidade, por independência, pelo seu futuro", disse Maduro num discurso na semana passada.
Nas ruas da Argentina e da Venezuela, muitos perguntavam o que os dois líderes estavam fazendo em Cuba enquanto o povo enfrentava as maiores taxas de inflação da América Latina — e o temor palpável de que as coisas poderiam piorar —, num momento em que o investimento privado está se voltando para a economia americana em recuperação.
"Cuba?", disse Alberto Gómez, um veterano do exército argentino. "As pessoas estão traumatizadas com a alta do dólar, mas o governo não está falando sobre isso. Este é o único governo que tivemos que não ouve as pessoas."
Ambos os governos, líderes de uma vanguarda de esquerda na América Latina que se opõe aos EUA, ainda conservam uma grande base de apoio de pessoas como Bruno Pérez, estudante de sociologia em Buenos Aires.
"Minha opinião é que vários empresários estão tentando enfraquecer o governo", disse Pérez, ecoando os comentários do ministro da Fazenda, Axel Kicillof, que disse que interesses escusos derrubaram o peso na semana passada.
Na Venezuela, a firma de pesquisa Datanalisis informou em dezembro que Maduro tinha a aprovação de pouco mais de 50% da população numa pesquisa realizada dias após ele ter forçado varejistas a vender eletroeletrônicos com desconto como uma medida de combate à inflação.
Mas a mesma pesquisa mostrou que apenas 26,5% dos entrevistados acreditam que as políticas econômicas do governo estão ajudando a melhorar a situação (Maduro culpa uma "guerra econômica" fomentada pelo governo americano e por capitalistas da Venezuela pelos problemas do país).
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, acena para jornalistas ao deixar o Hotel Nacional, em Havana. Líderes dos países da América Latina se reúnem terça-feira na capital cubana.
Associated Press
Kirchner, que venceu as eleições por ampla maioria em 2011, viu sua aprovação cair rapidamente nas últimas semanas, segundo firmas de pesquisas. Cerca de 75% dos participantes de uma pesquisa feita uma semana atrás pela Management Fit, de Buenos Aires, achavam que a economia estava indo na direção errada, e 66,5% reprovaram a forma como a economia está sendo conduzida.
Uma preocupação vital, principalmente para as legiões de pobres dos dois países, é a inflação, que estava em 56,2% ao ano na Venezuela e se aproximando dos 30% na Argentina, segundo economistas cujos dados são usados por agências de crédito.
"O presidente é o culpado pelo que está acontecendo e ele está visitando Fidel", disse Jesús Rodriguez, que tem 37 anos e é motorista de táxi na Venezuela. "Aceitamos as filas longas para comprar um pacote de farinha ou leite", disse. "Ficamos ao léu enquanto as coisas pioravam."
Na Argentina, Kirchner defendeu sua ida a Cuba diante de boatos de que cancelaria a viagem por motivos de saúde. Ela se submeteu a uma cirurgia no início de outubro para a retirada de um coágulo próximo ao cérebro.
"Você tem que ficar zangada com aqueles que mentem, não com aqueles que acreditam nas mentiras", disse ela.
O governo argentino começou ontem a permitir que a população compre uma quantidade limitada de dólares pelo câmbio oficial, de cerca de oito pesos por dólar, para evitar uma corrida pela moeda americana no câmbio negro.
A medida alivia as restrições rígidas para compra de dólares que entraram em vigor em novembro de 2011 com o objetivo de evitar a fuga de capitais, mas que tiveram o efeito colateral de estimular um ativo mercado negro.
Embora seja um relaxamento das políticas de câmbio, o plano atual traz grandes riscos para os compradores: haverá uma sobretaxa de 20% e as empresas estão proibidas de comprar dólar.
O professor de história Carlos Pertierra, de 70 anos, disse que as medidas não devem alterar a situação da economia argentina, principalmente porque uma moeda mais fraca pode gerar ainda mais inflação.
"Não entendo o que eles estão tentando fazer", disse. "O que vejo é que eles miram e apontam para cá, e então miram e apontam para lá. O governo parece uma criança imprevisível."
Um peso desvalorizado pode estimular as exportações da soja argentina, por exemplo, tornando seu preço mais competitivo, mas pode estimular também a inflação ao tornar os produtos importados mais caros na moeda local. Muitos estabelecimentos já começaram a remarcar os preços ontem.
Javier Corrales, professor da faculdade americana Amherst College que escreve com frequência sobre a América Latina, disse que é possível que, como no caso de Maduro na Venezuela, Kirchner veja o fortalecimento das relações com outros países como um benefício.
"Ao decidir ir para Cuba, talvez a Argentina esteja demonstrando como ela acha que a crise é séria, o quanto ela precisa de conselhos externos", disse Corrales. "E o quanto ela deseja que os conselhos permaneçam em segredo."
(Colaboraram Ezequiel Minaya e Kejal Vyas, de Caracas.)