O empresário que derrotou Cristina Kirchner

Dias antes de ser eleito presidente da Argentina, no fecho da campanha, Mauricio Macri ouviu do seu rival nas urnas um impropério que não fugia à verdade. Daniel Scioli dizia-lhe: "Os argentinos vão votar entre um arrogante de Barrio Parque e um trabalhador do povo." Barrio Parque é nada menos que a zona 'bem' de Buenos Aires, um bairro abastado de casas impecáveis e caríssimas, também conhecido por Palermo Chico. E se a comparação soa exagerada, é porém o retrato caricatural de uma eleição que dividiu o país e cujo resultado demonstra isso mesmo: com 51,4% dos votos contra 48,6%, Macri venceu. Mas não venceu apoteoticamente. A sua vitória contém a derrota de não contar com maioria nas Câmaras de deputados e senadores. Como disse há dias o ex-presidente uruguaio, José Mujica, o de Macri será "um governo sem Parlamento". E, como escreveu o "The Guardian", "Macri pode vir a perceber que é mais fácil ganhar a chave da Casa Rosada [sede do governo argentino] do que completar quatro anos de mandato".

Se o conseguir, será o primeiro presidente não peronista a fazê-lo desde o fim da ditadura, em 1983. Neste momento, em que todas as hipóteses permanecem em aberto, ele já é o primeiro que, nos últimos 70 anos, não pertence a qualquer dos dois partidos do arco do poder na Argentina - o Partido Peronista ou a União Cívica Radical (UCR) - tendo sido eleito pelo Cambiemos, uma aliança entre a velha UCR e o relativamente novo PRO. Mauricio Macri é um outsider e representa uma mudança de 360º graus na orientação política da Argentina, desde logo por querer o contrário do que a sua antecessora, Cristina Kirchner - e antes desta Néstor Kirchner, falecido em 2010. Aos 12 anos de kirchnerismo - de raiz peronista e orientação de esquerda, populista para alguns - irá agora contrapor-se uma direita neoliberal que representa sobretudo a elite do país e uma classe média descontente com o seu rumo político.

"A ideia é governar para todos", disse porém Macri na sua primeira conferência de imprensa. E este será talvez o seu maior desafio. Desde o início da campanha presidencial que o facto de provir de uma família abastada e teoricamente afastada da realidade de um país com 22% de pobreza não jogou em seu favor, e Macri tudo fez para contrariar esta imagem. Talvez o gesto mais simbólico tenha sido o de fechar a campanha em Jujuy, a norte do país, muito longe da capital cujo governo chefiou por quase uma década, nos confins de uma Argentina já não branca e rica mas indígena, carente e silenciosa.

Mudança de imagem

Quem o conhece diz que ele mudou. Teve de o fazer para, nos dois meses que separaram a primeira da segunda volta eleitoral, se impor face ao candidato da continuidade. E convencer um eleitorado dividido e um país de novo a braços com uma inflação de dois dígitos e um défice previsto de 7%. Para ganhar, optou menos por eventos de massas do que pelo contacto direto: foram centenas de chamadas telefónicas feitas ao acaso, de visitas à casa das pessoas, de idas a clubes, associações, escolas. Tudo para apagar da sua figura qualquer rescaldo de frieza ou de altivez.

Havia razões para isso. Mauricio Macri nasceu em berço de ouro, em Tandil - província de Buenos Aires - a 8 de fevereiro de 1959. É o primeiro dos seis filhos de Franco Macri, um imigrante italiano chegado à Argentina aos 18 anos que hoje é um dos grandes magnatas latino-americanos da construção. Formou-se em engenharia civil pela Universidade Católica Argentina, chegando a frequentar a Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Trabalhou no Citibank antes de entrar para o negócio familiar, tornando-se vice-presidente da holding SOCMA, que dirigia as empresas do Grupo Macri. Porém, a relação com o pai era demasiado complexa e o filho mais velho cedo tentou sair da sua alçada. Casou-se três vezes e tem quatro filhos, a mais nova de quatro anos, fruto da sua relação com a empresária Juliana Awada. Que também terá sido uma influência positiva na preparação da sua nova imagem.

Mauricio Macri e a filha Antnia, de quatro anos, a festejar a vitria eleitoral

Mauricio Macri e a filha Antónia, de quatro anos, a festejar a vitória eleitoral

STRINGER/ARGENTINA

Em agosto de 1991, Macri foi sequestrado à porta da sua casa em Buenos Aires e levado para uma cave minúscula, onde esteve 12 dias fechado. Mais tarde, soube-se que os sequestradores eram polícias no ativo. A sua libertação custou à família um resgate de seis milhões de dólares. E a ele, a prisão deixou-lhe uma agorafobia com que ainda se debate e outras sequelas que rentabilizou durante a campanha para a presidência, mencionando-as em discursos e debates. Apesar delas, em 1995 conseguiu ser nomeado presidente do Clube Atlético de Boca Juniors, um dos mais populares do país e berço de jogadores como Diego Maradona. Nessa altura, o futebolista resumiu numa frase o estigma que recaiu sobre Macri desde sempre: "É um menino do papá." Porém, estava a deixar de o ser. Os 13 anos passados à frente do Boca foram a rampa de lançamento da sua carreira política.

A génese de um presidente

Esta começou formalmente em 2003, ao fundar, no rescaldo da grave crise económica de 2001, o partido Compromiso para el Cambio e ao apresentar-se como candidato a governador de Buenos Aires, perdendo para o peronista Aníbal Ibarra. Dois anos depois, esteve na origem de Propuesta Republicana, ou PRO, pela qual foi eleito deputado. A sua passagem pelo Parlamento destacou-se pela negativa: Macri ausentava-se quase sempre das sessões. 2007, ano em que protagonizou o recorde de não compareceu a nenhuma, foi também o ano em que venceu finalmente as eleições para chefe do Governo de Buenos Aires, que voltaria a ganhar em 2011. Neste cargo manteve-se até no passado domingo ser eleito presidente.

Macri já delineou as primeiras medidas que tenciona pôr em prática quando tomar posse, a 10 de dezembro. Fê-lo numa conferência de imprensa, o que constitui um elemento diferenciador da sua antecessora - Cristina Kirchner recusava-se a dá-las, substituindo-as por 'comunicados'. A lista das mudanças é longa e prioritariamente económica, e inclui a liberalização cambial - e consequente desvalorização do peso -, o ajuste fiscal e o fim paulatino dos subsídios à energia, de que 93% dos habitantes de Buenos Aires usufruem.

Macri quer também agir sobre outras feridas da Argentina, prometendo anular o acordo com o Irão que Kirchner assinou há dois anos, para a colaboração na investigação do atentado à AMIA (Asociación Mutual Israelita Argentina) em 1994. Em janeiro deste ano, o procurador Alberto Nisman, encarregue do caso, acusou a então presidente de promover este acordo com o objetivo de "fabricar a inocência do Irão" e foi morto pouco depois. Outro ponto 'de honra' para o novo governante é realinhar a Argentina em termos de política internacional, anunciando que o primeiro país a visitar será o Brasil. Por outro lado, na próxima cimeira do Mercosur, em dezembro, defenderá a expulsão da Venezuela, por "perseguição aos opositores".

Duas frentes diplomáticas

Ambas as medidas estão ligadas, pois Macri disse esperar que o Brasil o acompanhe na defesa da aplicação à Venezuela da cláusula democrática do Mercosur segundo a qual é possível suspender um país membro que não respeite os princípios da democracia. A intenção de Macri já foi alvo da reação de Rafael Correa, o presidente do Ecuador, que qualificou as declarações do presidente argentino de "intromissão nos assuntos internos" da Venezuela, país "onde o governo foi eleito livre e democraticamente". E, a antever a crise diplomática que se desenha, comentou: "Penso que a visão histórica da integração [latino-americana], este destino comum, vai além das ideologias."

Na formação do seu governo, Mauricio Macri privilegiou uma maioria de ministros oriundos da classe média urbana de Buenos Aires, com muitos nomes vindos do meio empresarial e opositores do governo anterior. Em vez de um tradicional Ministério da Economia, haverá um 'gabinete económico' formado por seis ministros que irão trabalhar em conjunto.

Na quarta-feira, Macri reuniu-se com Cristina Kirchner afim de começar a preparar a transição governativa. Mas saiu dececionado. "Não valeu a pena", queixou-se aos jornalistas no fim do encontro, acrescentando que "o nível de desinformação é bastante particular". A ainda presidente limitou-se a felicitá-lo e só lhe reservou uns parcos 20 minutos. Recusou-se a ceder-lhe quaisquer dados antes de 10 de dezembro, remetendo para essa data a revelação dos números da sua gestão. Esta atitude não antecipa um futuro fácil para quem será obrigado a uma constante negociação e diálogo com os seus opositores. E a figura de Cristina promete manter-se bem presente no campo judicial, onde nomeou juízes da sua confiança, e na administração pública, que cresceu exponencialmente sob o seu mandato.

Atualização do artigo publicado no Expresso Diário de 26/11/2015

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