Eleitores escolhem amanhã sucessor de Cristina, que quando passar o testemunho põe fim a 12 anos de kirchnerismo
Os primeiros acordes do último tango kirchnerista começam a ser ouvidos amanhã, quando mais de 32 milhões de eleitores argentinos forem chamados às urnas para eleger o sucessor de Cristina Kirchner. Daniel Scioli, apoiado pelo governo, é o favorito face aos principais opositores, Maurício Macri e Sérgio Massa. Independentemente de quem sair vencedor, a cerimónia de tomada de posse do novo presidente, a 12 de dezembro, marcará o fim de uma era. Depois de 12 anos, deixará de haver um Kirchner na Casa Rosada - Néstor foi eleito em 2003 e a mulher em 2007 e 2011. Resta saber se o tango kirchnerista continuará a ouvir-se nos bastidores do governo.
Para evitar uma segunda volta a 22 de novembro, e a possibilidade de enfrentar a oposição unida, Scioli tem de conseguir amanhã mais de 45% dos votos ou mais de 40% e uma diferença de dez pontos percentuais em relação ao principal adversário. O atual governador da província de Buenos Aires, de 58 anos, surge nas sondagens com 38,3% das intenções de voto, deixando ainda com esperança o chefe de governo da capital, Macri, de 56 anos, que tem 29,2%. O congressista que chegou a ser chefe de gabinete de Cristina Kirchner, Massa, de 43 anos, está em terceiro, com 21%.
Apesar de ser apoiado pela presidente, o ex-campeão de motonáutica (que perdeu o braço direito num acidente em 1989) não era a primeira opção do kirchnerismo. Mas, por estar mais bem posicionado nas sondagens, foi o escolhido como candidato da Frente para a Vitória, com Cristina a impor o nome de Carlos Zannini (seu aliado) como vice-presidente. O seu estilo é também bem diferente do da presidente, como ficou claro no último comício, em Buenos Aires, mais sóbrio do que o habitual. "Será um novo presidente que expressa a continuidade do governo iniciado com a eleição de Néstor Kirchner e continuado pelos dois mandatos de Cristina Kirchner", disse ao DN o embaixador argentino em Lisboa, Jorge Argüello, sobre a possível eleição de Scioli. Em relação às eventuais divergências com a presidente, o embaixador lembrou que o governador de Buenos Aires foi vice-presidente de Néstor e acompanhou sempre, sem divergências, as políticas kirchneristas. Além do mais, a sua escolha como candidato surgiu do consenso interno e não foi fruto de uma pugna. "Mas claro que cada presidente tem o seu estilo e cunho pessoal. Penso que Scioli vem com um cunho modernizador, vai pôr ênfase na reabertura da Argentina e reencontro com o mundo", acrescentou.
Desafios
A Argentina de hoje não é a de há 12 anos, mas também já não é a dos anos dourados do kirchnerismo, quando a economia crescia a uma média de 7% ao ano. A previsão do Fundo Monetário Internacional para o próximo ano é de uma contração do PIB de 0,7%. Outro valor negativo que o sucessor de Cristina terá de enfrentar é a da elevada inflação: segundo o governo, foi de 23,9% em 2014, mas os institutos privados dizem que foi de 35%.
Eleito no rescaldo da crise de 2001, Néstor (que morreu em 2010) e depois Cristina lideraram a reviravolta económica, conseguindo reestruturar 93% da dívida, que ascendia a cem mil milhões de dólares, e reduzir o desemprego. O próximo presidente terá contudo de lidar com os fundos buitre (abutre), que detém os outros 7% da dívida e exigem nos tribunais o pagamento a 100% (mais juros). Por causa desta situação, a Argentina não voltou aos mercados internacionais.
Ainda a nível económico, o kirchnerismo nacionalizou empresas como a petrolífera YPF ou as Aerolínhas Argentinas. Algo que nem o principal candidato opositor, Macri, disse que pretende mudar. Tal como não quer abandonar os programas sociais, como o abono de família (46 euros por criança, por mês), base de muito apoio do kirchnerismo. Esses programas sociais permitiram reduzir a pobreza, que era de 57% em 2002. O valor atual é desconhecido, já que o governo argentino optou por não divulgar o índice da pobreza, mas a oposição fala numa subida nos últimos anos.
A nível da justiça, o kirchnerismo levantou as amnistias contra os crimes cometidos durante a ditadura militar (1976-1983), possibilitando mais de meio milhar de condenações por violações dos direitos humanos - incluindo a do ex-ditador Jorge Videla. Mas o aumento do património familiar dos Kirchner em 1000% desencadeou suspeitas de corrupção que ainda não foram totalmente postas de lado e ensombram o legado do kirchnerismo.