Novos ares para as relações internacionais da Argentina

Daniel Scioli (à esq.) e Mauricio Macri no debate presidencial (Foto: AP Photo/Natacha Pisarenko)

Neste domingo, dia 22, o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, e o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, enfrentam um segundo turno inédito na Argentina, após 12 anos de kirchnerismo no país. O mandato de Nestor Kirchner (2003-2007) foi sucedido por dois de sua mulher, Cristina, reeleita em 2011.

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Macri, que é ex-presidente do clube Boca Júniors, é fundador do partido conservador Proposta Republicana (PRO) e lidera a frente Cambiemos (Mudemos). Scioli, que tem apoio de Cristina, é do Partido Judicialista, e disputa a presidência pela Frente pela Vitória.

As eleições prometem ser acirradas. As últimas pesquisas mostram preferência da maioria por Macri, com 52,8% das intenções de voto contra 42,6% do candidato da posição. O time do liberal também surpreendeu ao eleger a candidata Maria Eugenia Vidal ao governo da província de Buenos Aires, comandada há 28 anos pelo Partido Justicialista. Já Scioli ganhou as prévias nacionais de agosto, com 38,4% dos votos, quando o opositor conquistou 24,8% dos votos. Ele também esteve na liderança até a véspera do primeiro turno.

Scioli, que defende a forte presença do Estado na economia, comprometeu-se em modificar alguns impostos, levando mais benefícios a aposentados e usuários de programas sociais, elevando a receita deste grupo em até 21%. Já o candidato da oposição afirmou em sua campanha que manterá os programas sociais lançados no kirchnerismo assim como a estatização da Aerolíneas Argentinas e da petrolífera YPF - Yacimientos Petrolíferos Fiscales, mas que eliminará o controle cambial, imposto por Cristina em 2011.

A professora, pesquisadora e doutora em Relações Internacionais Cecília Baeza, da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que a saída de Cristina Kirchner permitirá novos rumos para as relações da Argentina com outros países, inclusive com o Brasil, e que há uma grande janela para a intensificação da cooperação econômica entre os dois vizinhos e maiores países da América Latina. Segundo ela, o legado do kirchnerismo inclui avanços quanto à redistribuição social e aos direitos humanos, como impunidade sobre as violações cometidas durante a ditadura militar e o matrimônio igualitário, mas uma economia carente de diversificação e internacionalização e com fracos resultados nas empresas reestatizadas.

ÉPOCA - A Câmara de Comércio dos Estados Unidos está levando líderes empresariais para a Argentina depois de 20 anos, segundo a Bloomberg, mas a inflação continua alta e o controle cambial ainda afasta investimentos externos. Em qual situação econômica e social Cristina Kirchner deixa a Argentina?
Cecília Baeza -
O crescimento econômico da Argentina desabou a partir de 2012 para 0,5% em 2014, e fica entre 0,5% e 0,7% para 2015. As exportações e as importações caíram brutalmente: em 2014, as relações comerciais da Argentina com o mundo foram as mais baixas desde 2010. A inflação continua alta e o controle cambial permanece. Parte dessa situação se explica pelo contexto global, em particular pela desaceleração econômica da China, pela fraca recuperação da União Europeia e pelo impacto sobre as economias emergentes baseadas na exportações de commodities. Nesse sentido, a Argentina não é tão diferente de outros países emergentes do mundo, e em particular do Brasil. Porém, muitos economistas também insistem sobre a responsabilidade das políticas dos últimos governos na tendência de fundo para uma perda da capacidade comercial e produtiva do pais. Essa perda é estrutural, e não unicamente conjuntural.   

Muitos atores nacionais e internacionais estão acostumados a ver ciclos curtos de crescimento e resseção na Argentina. A enorme necessidade de investimentos externos leva analistas a pensar que, com uma mudança de governo e uma esperada recuperação econômica, oportunidades surgirão para novos negócios. Mesmo em contextos flutuantes e difíceis, alguns atores podem ganhar de esses ciclos curtos. Não duvido que a Argentina de 2016 já apresente oportunidades em alguns setores (como o gás de xisto) que podem ser aproveitados por certos agentes econômicos.

ÉPOCA - A saída da presidente trará benefícios para a política externa do país?
Cecília Baeza -
A política externa dos últimos anos do segundo mandato da presidente Cristina Kirchner adotou um estilo de confrontação, em particular com os Estados Unidos. Isso lhe permitiu se aproximar de novos parceiros, como a Rússia. Porém, os benefícios ao longo prazo de uma relação com a Rússia não são promissores - o país também enfrenta uma situação econômica precária e uma demografia decadente. Cristina conseguiu irritar seus vizinhos, mesmo com os com os quais tinha uma afinidade ideológica, como foi o caso com Dilma, no Brasil, e com Pepe Mujica, no Uruguai. Com certeza, a saída da presidente vai permitir o desanuviamento dessas relações, que são de primeira importância para a Argentina.

ÉPOCA - Quais os legados positivos e negativos do kirchnerismo? E nos mandatos de Cristina, especificamente?
Cecília Baeza -
O governo do Nestor Kirchner permitiu que a Argentina se recuperasse da terrível crise financeira de 2001 e 2002. Ele restaurou a dignidade do país com a negociação sobre o reescalonamento da dívida externa, acabou com as leis de Obediência Devida e de Ponto Final, conhecidas como leis de perdão e de impunidade sobre as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, e iniciou políticas de redistribuição social para mitigar os efeitos da crise sobre a pobreza. Os mandatos de Cristina prolongaram essas políticas e adicionaram novas, como o Subsídio Universal por Filho e o matrimônio igualitário. Essas políticas são consideradas positivas pela maioria da população argentina e acho que permanecerão como o legado dos anos Kirchner.

Por outro lado, as renacionalizações e o modo como foram feitas, como no caso de Aerolíneas Argentinas e da YPF (só parcialmente) são mais polêmicas. A competência das pessoas designadas para gerir essas companhias - todas próximas do governo - foi discutida em base aos fracos resultados empresariais.

A incapacidade para negociar com os holdouts [o país enfrenta uma longa batalha jurídica com fundos de risco em relação a dívidas de 2001] nos Estados Unidos também é vista para alguns atores econômicos como um ponto negativo desse governo. O desaproveitamento dos anos de forte crescimento econômico para diversificar e internacionalizar a economia argentina aparece como o principal erro do kirchnerismo.   

ÉPOCA - Quanto às relações exteriores: quais medidas o novo presidente pode tomar para agregar novos parceiros ou ampliar o comércio com os já existentes?
Cecília Baeza -
Eliminar boa parte das barreiras burocráticas impostas nos últimos anos facilitaria muito a vida das empresas que querem tanto importar quanto exportar. O novo presidente deve entender que exportar mais implica também importar mais, e que é contraprodutivo pensar incentivar um sem deixar fluir o outro. A questão cambiária também é crucial, mas aí os equilíbrios macro são mais complicados. A Argentina junto com seus parceiros do Mercosul deveria se aproximar mais da Aliança do Pacífico para não ficar fora dos acordos recém conseguidos através do Tratado Transpacífico.

ÉPOCA- Existe espaço para Brasil e Argentina trabalharem mais cooperados?
Cecília Baeza -
Não somente existe espaço como há uma necessidade de cooperar entre esses dois países. Existe interdependência em certos setores, em particular da indústria automotriz, e eles são importantes parceiros comerciais. Argentina e Brasil devem continuar desenvolvendo as cadeias de valor e tentar criar sinergias para subir nessas cadeias a nível global. Os dois maiores países da América do Sul não podem pensar que é benéfico virar as costas um para o outro.

ÉPOCA - O que significa uma vitória de Macri e uma vitória de Scioli neste domingo?
Cecília Baeza -
Acho que as diferenças não serão tão grandes na prática. Scioli tem se demarcado muito dos governos dos Kirchner, e Macri não quer aparecer como o novo Menem [Carlos Saúl Menem Akil, presidiu o país de 1989 a 1999 - período de baixa inflação mas quando a taxa de desemprego subiu a mais de 20%]. Além das retóricas de campanha, veremos um governo virado ao pragmatismo. Se Scioli for eleito, terá maior dificuldade para implementar reformas, pois seguirá trabalhando com boa parte da antiga administração. Se Macri for eleito, terá maior dificuldade em termos de governabilidade, pois existem amplos setores do peronismo (dentro do Congresso e também fora, como sindicatos e movimentos sociais) com os quais deverá negociar.

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