Neto uma das Avós da Praça de Maio, músico é ‘encontrado’ após …

No auditrio do centro cultural Haroldo Conti, em Buenos Aires, o pblico costuma se comportar de forma solene e respeitosa. No para menos. O pequeno teatro fica dentro do que foi o edifcio da Esma (Escola de Mecnica da Marinha), o principal centro clandestino da ltima ditadura argentina (1976-83).

Ali, estima-se que tenham sido torturadas e mortas milhares de pessoas, alm das que partiram do local para os "voos da morte", nos quais os inimigos do regime eram vendados, sedados e atirados no rio da Prata. Hoje, o espao um centro de espetculos e exposies, com compromisso de manter viva a memria dos horrores daqueles dias.

Numa sexta-feira de incio de vero portenho, o pblico espera a apresentao de um septeto de jazz. Antes da entrada dos artistas, porm, comea o burburinho. As pessoas voltam-se para trs. Com as luzes j semi-apagadas, vislumbra-se a sombra de uma senhora, caminhando devagar, assistida por uma mulher mais jovem. Quando fica evidente que aquela Estela de Carlotto, 85, lder das Avs da Praa de Maio, ouvem-se "ohs" e soluos, seguidos de um forte aplauso.

Uma das pessoas mais respeitadas da Argentina, com admiradores esquerda e direita do espectro poltico, Estela no comparece ao evento como a ativista que comanda a associao dedicada busca dos mais de 500 bebs -filhos de desaparecidos- sequestrados pelos militares nos anos 1970. Est ali como av, a orgulhar-se do talento do neto, finalmente encontrado aps mais de 30 anos de busca incessante.

Ignacio de Carlotto, 37, o lder do septeto que leva seu nome e que lana seu terceiro lbum ("Ignacio de Carlotto Septeto"). Ar tmido, como que incomodado com a luz que reflete seu cabelo grisalho desalinhado, o msico comea a apresentar o disco, contando pausadamente histrias sobre cada uma de suas canes, que misturam jazz e msica argentina folclrica.

"Desde pequeno queria ser msico, e no entendia bem o porqu. Na minha famlia de criao no havia nenhum msico. Parecia que havia algo a. E, de fato, depois do reencontro com minha famlia biolgica, percebi algumas conexes. Meu pai tocava bateria, e meu av era saxofonista", conta Ignacio Serafina.

H pouco mais de um ano, a vida do artista vem sendo mesclar shows na Argentina e internacionais (tocou no Rio no fim do ano passado), com os quais j estava acostumado, a homenagens e entrevistas relacionadas descoberta de sua verdadeira identidade.

At junho de 2014, Ignacio no havia tido motivos para desconfiar que no pertencia ao ambiente no qual crescera.

Criado por um casal de camponeses de Olavarra (provncia de Buenos Aires), tivera uma tpica infncia de fazenda. Quando se viu interessado por msica, formou uma banda com amigos da regio, e at hoje se desloca a Buenos Aires s quando necessrio, por compromissos de trabalho. "Gosto do campo, onde tenho mais calma para trabalhar."

As coisas comearam a mudar quando uma conhecida da famlia revelou companheira de Ignacio que ele era adotado, e que seus pais verdadeiros haviam sido mortos nos pores da ditadura.

A revelao s se fazia possvel naquele momento porque o homem que tinha feito a mediao com os militares e entregue Ignacio aos pais adotivos, um rico senhor de terras local, havia morrido recentemente. Quando soube disso, Ignacio correu para fazer testes de DNA e apresentar s Avs da Praa de Maio seu caso, na tentativa de descobrir quem haviam sido seus pais.

"No imaginava que poderia ser neto de Estela. Sempre a via pela televiso e me dava pena. Pensava: 'Ser possvel que ela nunca encontrar o neto?'", conta Ignacio. A associao liderada pela av existe desde 1977, e j recuperou 119 dos netos desaparecidos.

O sequestro de bebs foi prática sistemática no regime militar argentino, at mesmo admitida, em seus últimos dias, pelo próprio general Jorge Rafael Videla (1925-2013). Filhos de militantes esquerdistas que se opunham ditadura, os bebs eram entregues a famlias que os oficiais consideravam "de confiana". Muitas ficaram com os prprios militares.

"No quero ter uma relao fantasmagrica com meus pais, eu no os conheci, no necessariamente devo herdar as bandeiras pelas quais lutaram. Sou artista. Mas estou feliz e orgulhoso de finalmente saber quem foram, e que posso ser parte do processo de cicatrizao pelo qual nosso pas ainda no terminou de passar", resume Ignacio.

A descoberta do paradeiro de Ignacio ajudou a juntar peas at ento desconhecidas do quebra-cabeas sobre a desapario de Laura Carlotto, sua me. Por exemplo, os testes de DNA revelaram tambm a identidade do pai do msico, desconhecida de Estela e dos irmos de Laura, que no sabiam com quem ela tinha uma relao afetiva.

Acompanhada por todo o pas como uma novela trgica e popular, a histria de Ignacio comeou em 1977, quando Laura foi sequestrada por um "grupo de tarefas" (como se denominavam os agentes da represso), na cidade de La Plata (sul de Buenos Aires), onde vivia.

Aos 22, era uma bela militante de cabelos longos e olhos incisivos, grvida do namorado, Walmir Montoya, 26, que atuava com os Montoneros (guerrilha de esquerda). Enquanto ele foi assassinado na hora, Laura foi mantida em crcere para que conclusse sua gravidez, no centro de deteno de La Cacha.

Depois que Ignacio nasceu, em junho de 1978, Laura foi executada. Seu corpo foi devolvido me com feridas de bala no estmago e com o rosto desfigurado por golpes de espingarda. Companheiros de priso de Laura diriam a Estela, depois, que ela havia tido um beb no cativeiro, batizado de Guido.

Estela, uma professora de classe mdia que at ento no se envolvera em poltica, se juntou a outras mulheres na mesma situao. Em 1977, surgia a Associao das Avs da Praa de Maio.

Desde ento, conseguiram encontrar mais de cem netos. O de Estela, porm, no parecia ter deixado rastros. Quando completou 80 anos, disse que pedira a Deus apenas que no morresse antes de encontrar Guido. "Sei que hoje minha av prefere que eu me chame Guido, assim que ela vem me buscando h anos. Mas no posso, eu j tenho uma identidade e me chamo Ignacio. preciso aceitar as duas coisas", diz.

Diferentemente de muitos netos recuperados, que entram para a vida de ativismo social, Ignacio prefere continuar com sua arte. Seus pais adotivos respondero a processo, mas o msico cr em sua inocncia. "Eles agiram de boa-f. No sabiam que eu era filho de prisioneiros. Acharam que minha me tinha me abandonado."

Quanto ao desenrolar do processo nos tribunais, Ignacio prefere no se envolver. "No acredito que devamos esquecer o que ocorreu naqueles anos terrveis. No sou dos que defendem que preciso esquecer. Acho a memria necessria para que o pas siga adiante. E para isso h gente que precisa responder na Justia pelo que fez. Mas cabe Justia fazer seu trabalho, eu quero seguir minha histria."

J Estela, apesar do reencontro, no acha que seu trabalho est completo. "H muito por fazer, ainda h muitos netos para serem encontrados. Eu vou continuar buscando", diz.

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