As pesquisas falharam no primeiro turno ao prever uma vantagem ampla ou mesmo a vitória no primeiro turno de Daniel Scioli sobre Mauricio Macri, pois o primeiro teve uma margem bem estreita. E a maioria delas errou de novo no segundo ao prever uma dianteira de 7% a 13% de Macri sobre Scioli, pois o resultado final foi 51,4% a 48,6%, mais apertado que a tão contestada vitória de Dilma Rousseff sobre Aécio Neves (51,6% a 48,4%).
Em todo caso, a oposição conservadora venceu. Combinado com a persistência da inflação e da escassez de divisas, o fraco desempenho da economia desde 2012, em contraste com a acentuada recuperação no mandato de Néstor Kirchner (2003-2007) e no primeiro mandato de Cristina (2007-2011), é a razão mais importante, seguida por um discurso pouco distinto da oposição. Muitos eleitores, principalmente os jovens demais para se lembrar dos anos 1990, preferiram arriscar-se com um candidato claramente mais próximo do neoliberalismo e a esquerda trotskista, com não desprezíveis 3,2% no primeiro turno, pregou o voto em branco.
A diferença de apenas 705 mil votos indica que, mesmo assim, o kirchnerismo poderia ter vencido com um pouco mais de empenho ou de sorte. Scioli foi prejudicado pelas enchentes na província da qual é governador, Buenos Aires, onde votam 38% dos eleitores argentinos. Não só seu candidato a governador perdeu para a candidata de Macri, como o segundo turno lhe deu apenas 51,1% dos votos válidos. Tivesse Scioli os mesmos 55,2% que o reelegeram como governador em 2011, teria virado o resultado nacional.
Quanto isso pode afetar a Argentina e a América Latina? Durante a campanha Macri prometeu manter as políticas mais populares do kirchnerismo, por mais que as tivesse atacado nos anos anteriores, entre elas as estatizações da YPF e Aerolineas Argentinas, o “Bolsa Família” argentino (Asignación Universal por Hijo) e o “Futebol para Todos” (distribuição estatal gratuita dos jogos nacionais e sul-americanos), e buscou um perfil populista, visitando eleitores comuns para ouvir seus problemas. Mas apenas os mais ingênuos podem pensar que ele não deseja caminhar na direção dos interesses de Washington e das elites tanto quanto lhe permitirem as circunstâncias e a oposição peronista.
O governo de Macri será mais difícil que o de Piñera no Chile e talvez dê no mesmo resultado. (Roberto Pera)
Quem certamente não duvida disso são as famílias Mitre e Saguier, controladoras do jornal conservador La Nación. Embriagados pela vitória, cuja comemoração encheu as ruas da capital amplamente macrista até as 2 da madrugada, dedicaram o editorial da segunda-feira 23 a igualar a resistência à ditadura argentina aos terroristas do Estado Islâmico e exigir a anistia aos responsáveis pelos massacres e torturas perpetrados por militares nos anos 1970. Foram 522 condenados, quase todos durante os governos Kirchner, e mais de 300 dos quais, lamenta o jornal, morreram presos. Repórteres e editores repudiaram o texto dos patrões nas redes sociais e com uma paralisação durante a qual exibiram cartazes de protesto como “Nem Perdão, Nem Esquecimento”.
Macri lavou as mãos com um breve comunicado: “A Justiça terá total independência para continuar seu trabalho nos julgamentos de repressores”. Sabe ter poucas condições de atender às esperanças desses viúvos da ditadura, pois a condenação desses criminosos é hoje quase consensual e sua revogação envolveria outros poderes da República. Por mais conservador que seja no âmago e por mais simpatias que tenha pelos velhos golpistas, Macri governará com uma Câmara na qual há 117 kirchneristas e 36 peronistas dissidentes em 257 cadeiras e um Senado com 42 e 10 em 72. Apesar de a maior parte do peronismo (incluído o casal Kirchner e Scioli) ter apoiado a aventura neoliberal de Carlos Menem e Domingo Cavallo nos anos 1990, será difícil per-
suadi-los a repetir o erro.
O que está ao alcance de Macri é um “ajuste” cuja medida e ritmo (terapia de choque ou gradual) só se saberá após a posse em 10 de dezembro, mas que declaradamente incluirá a unificação do mercado cambial, ou seja, uma forte desvalorização do câmbio oficial (9,64 pesos por dólar hoje) para igualá-lo ao paralelo ou “blue” (15,10 pesos por dólar), e o reajuste das tarifas de serviços públicos represadas durante o governo Kirchner, à custa de subsídios que hoje custam 4% do PIB, metade do déficit público. Pretende também a eliminação das negociações salariais paritárias mediadas pelo governo, que praticamente garantem o reajuste anual. Provavelmente haverá também cortes nos gastos e investimentos públicos, demissões e privatizações de estatais menos visíveis.
Embora visem equilibrar as contas públicas e melhorar a competitividade, essas medidas de austeridade serão certamente inflacionárias e recessivas. Gás, água, luz e transportes terão fortes aumentos (como prefeito de Buenos Aires, Macri aumentou a tarifa do metrô de 0,90 peso em 2008 e 1,10 em 2012 para 4,50 hoje), bem como todos os produtos hoje importados pelo câmbio oficial. Macri prometeu também elevar o limite de isenção do imposto de renda, mas dificilmente isso compensará as perdas reais, mesmo para a classe média. As importações cairão, mas, na atual conjuntura internacional, parece muito difícil tirar algum proveito da redução dos salários em dólares e da prometida desoneração tributária dos exportadores para aumentar a competitividade das exportações, basicamente commodities cujos preços e demanda são determinados principalmente por compras chinesas e europeias. Nos anos 1990, a balança comercial era favorecida pela exportação de petróleo, mas essa fonte secou e hoje a Argentina depende da importação de hidrocarbonetos, enquanto o Brasil é autossuficiente.
Os jovens não lembram dos anos 1990, mas a redação do La Nación reage à tentativa de retrocesso. (La Nacion/ AFP)
No campo diplomático, as relações de Macri com os EUA são bem conhecidas, graças às mensagens vazadas pelo WikiLeaks. Em 2007, apresentou-se à embaixada de Washington como líder do “primeiro partido pró-mercado e pró-negócios em 80 anos da história argentina, pronto para assumir o poder”. No ano seguinte, reclamava da “passividade” de Tio Sam em relação aos Kirchner, que “os argentinos estariam contentes de ver cair”, mesmo se tinham acabado de eleger Cristina e a reelegessem, com 54% dos votos, em 2011. Conectados a ele por meio de associações entre fundações estão o International Republican Institute (ligado ao Partido Republicano), a conservadora Heritage Foundation, as fundações de José María Aznar e Mario Vargas Llosa e a UnoAmerica, fundação liderada pelo venezuelano Alejandro Peña Esclusa, que reúne as ultradireitas da América Latina.
Está ao alcance de Macri enfraquecer a solidariedade latino-americana em proveito do Norte e criar problemas para o Mercosul. Ao ser eleito, explicitou a intenção de pedir a suspensão da Venezuela, o que certamente dividiria a organização e fortaleceria a oposição a Nicolás Maduro. Este enfrenta em 6 de dezembro uma eleição legislativa na qual, segundo apontam as pesquisas, a oposição deve conseguir a primeira vitória desde 1999. A fragilidade da economia limita, porém, sua influência nos assuntos continentais. O déficit no balanço de pagamentos, a escassez de reservas e a dificuldade de acesso ao crédito internacional deixam a Argentina mais dependente do Brasil, do Mercosul e dos BRICS que o inverso.
O Brasil é o principal mercado das exportações industriais argentinas e a China o maior de suas exportações agropecuárias. Ambos os países são hoje vitais para o financiamento de seu comércio exterior e, direta ou indiretamente, para o investimento estrangeiro direto. As montadoras, por exemplo, só investem na Argentina na medida em que ela serve como plataforma de exportação para o mercado brasileiro. Enquanto o Brasil tiver um governo inclinado à centro-esquerda e a promover a unidade sul-americana, é improvável que Macri queira contrariá-lo em questões substanciais, retórica à parte.
Se a direita continental precisa de um líder, Juan Manuel Santos está em posição mais favorável e estará melhor ainda em 2016. A paz com as Farc impulsionará sua popularidade e a economia da Colômbia, cujo PIB pode superar o argentino se o peso oficial for desvalorizado para unificar o câmbio, conforme prometeu o presidente eleito. Este espera contar com um empréstimo-ponte de 15 bilhões de dólares de bancos privados e Washington, o FMI e os financistas internacionais decerto mostrarão mais disposição para ajudar Macri do que tiveram com os Kirchner, mas, por mais que se esforcem, tão cedo a Argentina não será um modelo.
Ao contrário. Os próximos anos serão de carestia, protestos, desemprego e mobilização sindical peronista e nada garante uma retomada a tempo de proporcionar a reeleição em 2019. É alta a probabilidade de se repetir o Chile, onde o neoliberal Sebastián Piñera venceu em 2009 depois de longa hegemonia da Concertación, mas abriu caminho à mobilização popular por reformas e ao retorno de Michelle Bachelet com alianças e agenda bem mais à esquerda do que na década anterior, apesar de nos anos Piñera o crescimento da economia ter sido muito mais alto e a inflação muito mais baixa do que Macri pode hoje esperar.
*Reportagem publicada originalmente na edição 878 de CartaCapital, com o título "Começa a parte difícil"
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