‘Minha demissão é uma decisão política, um ataque à liberdade de …

“Olá Paulino, perdão pela intromissão, mas eu preciso dizer algo: me estão mandando embora da rádio”. Essas foram as palavras do jornalista Víctor Hugo Morales, que interrompeu o programa de um colega, pouco antes das 9h – hora em que começa o seu programa La Mañana –, avisando que a Rádio Continental, onde ele trabalhava desde 1987, decidiu tirar do ar o seu programa. Diante dos olhares atônitos dos colegas Paulino Rodrigues e Alejandro Elías, o jornalista uruguaio conseguir driblar a “operação” que a emissora realizou para que ele fosse despedido sem ter direito a se despedir dos seus ouvintes – o que não aconteceu. “Foi uma das manhãs mais tristes da minha vida, que não tem a ver só com o que me aconteceu, porque sinto que estamos vivendo a maior agressão à república e à democracia desde a ditadura”, afirmou Víctor Hugo Morales à Página/12. “Não tenho dúvidas de que se trata de uma decisão política”, acrescentou o jornalista, uma das vozes mais críticas ao governo de Mauricio Macri – e uma das mais escutadas da Argentina.
 
Do outro lado da linha telefônica, não há nenhum sentimento de bronca na voz de Morales, tampouco de irritação diante da demissão do jornalista, que ainda tinha um ano de contrato. “Ainda é difícil assimilar o que aconteceu, o que significa essa demissão. Não assimilei ainda a tristeza que vai me dominar em algum momento, quando eu perceber o tamanho do golpe que me deram. Este ano eu completaria 10 anos fazendo o programa jornalístico, e no dia 1º de novembro serão 50 anos como narrador de futebol, dos quais 30 foram pela Rádio Continental. Ficar um ano inteiro sem narrar justamente quando completo meio século é algo duro, que vai alimentar a minha tristeza, que chegará depois da perplexidade de hoje. E depois virão outras reações, do coração e da mente”, relata aquele que foi o condutor do programa La Mañana, o mais escutado da Continental durante o ano de 2015 – e um dos noticiários mais escutados da rádio argentina.
 
A decisão da emissora de despedir uma das maiores figuras da história do radiojornalismo argentino foi surpreendente. O vínculo contratual de Morales seria finalizado somente no dia 31 de dezembro de 2016. Em comunicado, a emissora tentou justificar a demissão por razões “artísticas”: a Rádio Continental comunica que decidiu dissolver o vínculo que mantinha com Víctor Hugo Morales, que conduzia os programas La Mañana e Competencia –, devido a reiteradas quebras de contrato que alteraram o normal desenvolvimento das emissões. Nos próximos dias, daremos a conhecer a nova programação da rádio, ratificando nosso compromisso de informar e entreter com responsabilidade e profissionalismo”, diz o texto que foi lido no ar, durante o horário que deveria ser do programa de Morales. Além dele, Matías Canillán foi outro jornalista e narrador que também foi despedido da Continental sem causa aparente.
 
“Ao longo de 9 anos no ar, nunca deixei de fazer o programa, em nenhuma manhã, que falta é essa que eles alegam?”, questiona Morales, entre risos incrédulos pelos motivos buscados pela emissora, que pertence ao grupo espanhol Prisa, com participação da empresa Telefónica. “No programa Competencia (de jornalismo esportivo), eu às vezes entrava por telefone, mas somente quando precisava me preservar devido a ter narrado algum jogo na noite anterior, nada mais que isso. Essa é a causa que utilizaram para me expulsar: que participo em Competencia menos do que deveria supostamente. É como dizer que a culpa é do meu mau hálito, é ridículo”, analisa o jornalista uruguaio.


– Você acha que as razões que lhe a empresa deu para justificar sua demissão foram justas? Houve algum aviso prévio a respeito dessas “quebras de contrato”?


– Não, nada, nunca. É uma desculpa é absurda. Eu nunca foi advertido, nem mesmo uma carta, ou aviso, alguma alusão, nada. Esses argumentos ajudarão muito a minha advogada, que conduzirá o processo que iniciarei contra a empresa. De qualquer forma, está claro que se trata de uma decisão que não nasceu na emissora. Ela também é responsável por essa situação, mas a única responsável. São muitos os elementos que se uniram neste último mês, e com isso podemos considerar que minha demissão não é um caso isolado, nem algo pessoal. Há um governo que quer avassalar os direitos das pessoas, e para isso estão querendo destruir a Lei de Meios e qualquer tipo de manifestação jornalística que seja crítica aos seus objetivos.


– Você não tem dúvidas de que a verdadeira razão da sua demissão é a sua postura crítica ao governo de Macri?


– A Rádio Continental, como todas as demais emissoras, está negociando a verba publicitaria. São poucas as que podem sobreviver sem isso, ou as que assumem o risco de que buscar essa verba sem abrir mão de dar liberdade aos seus jornalistas. Me dá a sensação de que a empresa na qual eu trabalho, nessa negociação, aqueles que são responsáveis por discutir com o governo essa verba publicitária entenderam o pedido latente, a exigência, ou talvez perceberam via insinuações claras do governo que seria um gesto importante para negociar melhor, tomar uma decisão como a de me tirar do ar. Eu sou uma voz que os incomoda, porque tinha um programa diário de quatro horas, que pensa de forma bem diferente da direita republicana neoliberal que tomou conta da Argentina, e essa conjuntura, moldada segundo a vontade desse diabólico personagem que é Héctor Magnetto (diretor executivo do Grupo Clarín), tem como seu principal agente o governo de Mauricio Macri, um sujeito que eu conheço desde sua época como presidente do Boca Juniors, e sei que tipo de pessoa é para que, agora, atue com esse afã de atropelar o mundo inteiro, o Congresso, a Corte Suprema de Justiça e todos a quem ele já pediu a renúncia, incluindo um juiz federal.


– Você considera que há uma tentativa de fazer uma chantagem, usando a verba publicitária estatal, para calar ou disciplinar vozes?


– O governo, com os setores jornalísticos que estão filosoficamente mais próximos, está determinando, neste momento, quais são os limites da liberdade de imprensa na Argentina. É o ocaso da república. É o ocaso da democracia, um conceito que a direita só reconhece quando ela ganha. Quando a direita não está no poder, reclama que existe populismo e fraude. Muitos dos valores “republicanos” foram deturpados na Argentina, e digo isso não pelo que me aconteceu, mas por tudo o que vimos neste mês trágico para a democracia, desde a posse do governo de Macri.


– Logo, você acha que as empresas jornalísticas, que estão atadas às suas necessidades financeiras, se tornam cúmplices?


– Como os meios de comunicação são dependentes dessa verba publicitária, estamos dentro de um dilema moral e ético no jornalismo, e diante de um governo que não quer perdoar nada. Não acho que exista, por parte da Rádio Continental um ataque pessoal contra mim, e sim a necessidade de manejar a linha editorial da emissora. E obviamente não podem mais contar comigo. As empresas têm porque se alinhar àqueles que pensam parecido com a direita que nos governa hoje. E claro, alguém como eu, que pensa completamente diferente em muitos aspectos, e não deixo de mostrar isso cada vez que me abrem o microfone, não é conveniente. Precisam me controlar para negociar a verba publicitária. O mundo da rádio necessita da verba publicitaria, porque a publicidade privada foi parar em outros meios, como a TV a cabo. Há anos, a TV a cabo chegou com a ideia de que era um negócio que se financiaria unicamente pelo pagamento de assinatura. Mas depois começaram a vender espaços publicitários, cujos anunciantes foram roubados das rádios. Então, hoje a rádio depende muito da verba estatal. E ter um jornalista que diz coisas que não são agradáveis aos interesses do poder todos os dias afeta essa receita.


– Ou seja, neste cenário, boa parte da liberdade de expressão está sendo refém da negociação pela verba publicitaria estatal?


– Estamos vivendo algo muito parecido a uma ditadura, clara e concreta. Não há Congresso, não há pudor para arrasar com as decisões, com as leis e os procedimentos que causam danos à Justiça e às instituições. Este mês, vivemos um nível de desinformação recorde. A empresa necessita não estar mal com o governo e, se não é possível controlar a linha editorial, deve tomar as decisões mais injustas. Mandaram embora também a Adrián Stoppelman, que é um humorista, nem os humoristas foram poupados. O mesmo aconteceu com Cinthia García.


– Você acha que este é um momento dos mais complexos para exercer a liberdade de expressão na Argentina?


– O pior desde a ditadura. Não há sequer um degradé de opacidade da liberdade de expressão nas ordens e decisões tomadas pelo poder político e pelas empresas envolvidas nesse círculo vicioso. Quando o governo anterior cortou a verba publicitária à revista Perfil, decisão que eu critiquei em seu momento, houve tremendas e numerosas vozes que se alçaram contra essa discriminação. E era somente um corte de verba. Quando (o líder dos caminhoneiros) Hugo Moyano não permitiu a saída dos veículos para a entrega de jornais e produtos do Grupo Clarín também houve uma reação ruidosa, interminável, repudiando o que seria um ataque à liberdade de expressão. Estamos vivendo momentos nos quais a república e a democracia estão sendo agredidas. Se está atacando a liberdade de expressão da mesma forma em que se está atacando o Congresso e as leis votadas democraticamente. Estão cometendo atropelos graves durante os meses de verão, para chegar em março com o trabalho sujo já concluído e sem que ninguém possa reagir. Porque, além do mais, a metodologia é criar sempre um atropelo novo, para que seja impossível acompanhar a sequência dos acontecimentos. Em que situação ficou o decreto para forçar a nomeação de juízes para completar a Corte Suprema?


– Ninguém tira da sua cabeça que a demissão tem a ver com razões políticas e não com um motivo artístico ou jornalístico.


– Absolutamente. Tenho a convicção moral e a razão lógica e de sentido comum, e a total consciência sobre qual é a mensagem por trás da minha demissão. E os diretores da rádio reconheceram isso numa conversa privada que tivemos. Como também está nítido nas palavras de Macri e outros líderes do seu partido, que há meses vêm dizendo que queriam cortar as cabeças dos que eles não gostavam, e efetivamente cortaram todas as da Rádio Nacional, Nacional Rock, do programa 678, e por aí vai. Não há dúvidas de eu sou uma continuidade dessa degola jornalística contra os que pensam diferente! O meu caso é estritamente político, mesmo sem ter um papel para comprovar. Este é um governo que quer se tornar dono de tudo, e para isso precisa silenciar vozes críticas e penetrantes. Porque, claro, eu não vou molestá-los estando numa rádio pequena, quase sem potência de transmissão e sem uma audiência grande. O que lhes incomoda é que essas vozes críticas estejam nas emissoras grandes, como a Continental, que está entre as quatro mais escutadas do país, que chega a muitos argentinos.


“Me esperavam com uma armadilha”


Víctor Hugo, graças à solidariedade dos colegas de outro programa e contra a vontade da emissora, teve quatro minutos para se despedir dos seus ouvintes. A direção da Rádio Continental preparou uma operação para impedir que o jornalista pudesse fazer isso. “Eles me esperaram na emissora com uma armadilha, que eu consegui driblar por um pouco de sorte e ajuda dos colegas. Cheguei na rádio muito mais cedo do que o habitual, porque daria uma entrevista ao canal TeleSur, avaliando o primeiro mês de governo de Macri. Me levantei mais cedo e cheguei na rádio às 7h. Os diretores e advogados da rádio chegaram depois, mas já tinham tudo planejado desde o dia anterior, e quando viram que eu já estava dentro do edifício ficaram perplexos, não sabiam como atuar. Faltando 15 minutos para o começo do meu programa, eles começaram a ler a ata. Nesse momento, como eu estava perto do estúdio, entrei e disse: `Ou passam publicidade durante toda a manhã ou abrem o microfone para que eu possa ao menos me despedir do público´. Assim, pude finalmente explicar aos ouvintes os motivos pelos quais o programa deixava de ir ao ar”.


– Você pretende processar a emissora judicialmente?


– Sim. Eles me ofereceram pagar o resto do contrato, mas também há dinheiro complementar ao meu salário. Além disso, me deixam fora do ar em janeiro, sem ter tempo de escutar outras ofertas de emissoras que já fecharam suas programações. Me causa uma enorme tristeza que esta situação amarga aconteça no ano em que minha carreira completa 50 anos, dos quais quase 30 foram trabalhando para a Rádio Continental. O prejuízo humano, afetivo e moral ninguém poderá reparar. Nunca.
 
Tradução: Victor Farinelli

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