O Mercosul foi posto em questão nas últimas semanas. A demora da Argentina em aproximar-se da oferta de liberalização de 90% do comércio do bloco com a União Europeia levou alguns políticos e empresários a defenderem transformar a união aduaneira em uma área de livre comércio. Isso significaria a abolição da Tarifa Externa Comum (TEC) e a liberdade para que cada membro realize acordos comerciais isoladamente, eliminando preferências dentro do bloco.
A proposta significaria retomar o projeto do governo Collor, que via o Mercosul apenas como o estágio inicial de um programa de liberalização mais amplo. Vários dos defensores atuais do fim do Mercosul apoiaram a adesão à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a aceitação das exigências dos países desenvolvidos, na OMC ou em acordos bilaterais, para a constituição de normas liberais que constrangessem a ação estatal em programas de compras governamentais, subsídios setoriais, políticas industriais, controle de capitais e proteção comercial. Esses tratados internacionais blindariam institucionalmente o neoliberalismo contra governos que insistissem em influenciar a alocação de recursos contra o livre mercado. No discurso liberal contra o Mercosul, a convivência do bloco com políticas desenvolvimentistas e a administração do comércio regional é vista como uma anomalia: resultado de “ideologias partidárias”, como se o neoliberalismo se identificasse não a partidos mas ao próprio interesse nacional permanente ou, pior, a leis da natureza.
A defesa incondicional da abertura comercial e da celebração de tratados liberais que normatizem as políticas de Estado recorreu ultimamente ao argumento que o tecido industrial brasileiro vem perdendo competividade por ser muito protegido da competição internacional e, por isso, não é capaz de se integrar a cadeias globais de produção. Esse argumento também não é novo, requentando a esperança que presidiu a liberalização unilateral na década de 1990: a ampliação da concorrência forçaria as empresas sobreviventes a incorporar tecnologias e eliminar “gorduras”, ganhando em eficiência e escala ao se especializarem em certos “nichos” das cadeias globais.
O argumento é anacrônico e nada aprendeu com a experiência de países asiáticos – a China é apenas o último - que se integraram virtuosamente a cadeias globais sem abdicarem de políticas industriais, tecnológicas e cambiais muito ativas. Tampouco aprendeu com a própria experiência brasileira. Na década de 1990, o resultado da abertura abrupta foi a incorporação rápida de tecnologias importadas e o corte de gastos em geração autônoma de tecnologias e capacitação própria de inovar. Desde então, a indústria brasileira tornou-se fortemente integrada às cadeias globais de fornecimento de insumos e bens de capital. Uma nova rodada de integração ocorreu depois da crise de 2008, quando o acirramento da concorrência internacional e a apreciação cambial do Real aumentaram o coeficiente importado nas cadeias de produção, sem levar, contudo, a uma elevação comparável das exportações industriais. Não há qualquer base histórica para imaginar que dobrar a aposta na abertura produzirá resultados opostos ao já verificados, tendendo sim a aprofundá-los.
A crítica liberal ao Mercosul segue afirmando que o Brasil é grande demais para o bloco e, como global player, deveria se integrar a outros blocos. O critério comercial não é o mais adequado para avaliar a importância do Mercosul, uma vez que a proximidade cria oportunidades mútuas no campo de infraestrutura de transporte, energia e comunicações, cooperação política, cultural e de segurança, e posicionamento em bloco diante de agendas contrárias aos países desenvolvidos, como em patentes, comércio agrícola e peso decisório nas organizações multilaterais. De todo modo, em seus próprios termos, o anacronismo da crítica liberal ao Mercosul está em que o bloco foi exatamente a região onde o saldo comercial menos caiu desde 2008.
Em uma perspectiva de maior prazo, é inegável que o Mercosul e a América do Sul foram as áreas em que as exportações brasileiras de bens de maior valor agregado se consolidaram. É verdade que essas exportações estão sofrendo com a conjuntura de crise de parceiros regionais (Argentina e Venezuela) e com a ampliação da concorrência provocada pela crise global, à medida que os países mais afetados por ela buscam recuperar-se tomando mercados externos com recurso à guerra cambial e subsídios. A piora do resultado comercial brasileiro no continente é muito menor, porém, do que no comércio com as regiões desenvolvidas em crise, como EUA e União Europeia.
Isso ocorre porque as regiões desenvolvidas são sede das matrizes controladoras de filiais instaladas no Mercosul e porque o comércio entre elas se aproxima de uma via de mão única: as filiais importam insumos e bens de capital desde a rede de fornecedores controlados pela matriz para atender o mercado regional com operações de montagem industrial. O comércio entre empresas nacionais e filiais que desenvolvem cadeias produtivas regionais protegidas pelas preferências do Mercosul, por sua vez, pode evoluir para um tipo de complementaridade menos desigual através de ganhos mútuos de escala, como ocorre no principal ramo industrial da região, a indústria automobilística. Prescindir do Mercosul implicaria diminuir a atratividade do investimento na região e ampliar seu perfil importador de produtos industriais de maior valor agregado. Se for esse o tipo de complementariedade comercial desejado pelos liberais brasileiros, devem propor rebatizar a FIESP de Federação das Importadoras do Estado de São Paulo.
Essa postura opõe-se radicalmente aos atuais governos de Brasil e Argentina, que buscam preservar e adensar cadeias industriais ameaçadas pelo acirramento da concorrência global. Isso provoca insatisfações nos países sede das matrizes: a União Europeia por exemplo fez consulta sobre a adequação do programa Inovar-Auto às regras da Organização Mundial do Comércio. Este programa oferece incentivos fiscais para montadoras que melhorem a eficiência energética dos automóveis e aumentem o valor agregado substituindo importações. Em meio à crise, qualquer iniciativa do governo brasileiro que influencie o comércio intra-firma tende a gerar insatisfações nas sedes das matrizes. Contudo, também deve provocar reclamações argentinas se prejudicar a complementaridade de cadeias produtivas regionais.
O Brasil não quer perder o acesso privilegiado ao mercado argentino (e vice-versa), mas pressiona a Argentina a aceitar reduções da Tarifa Externa Comum necessárias para a conclusão de acordos de livre-comércio do Mercosul com outros países e blocos. A importância que cada país confere ao acesso privilegiado ao mercado do outro foi reafirmada através da assinatura de um memorando de entendimento, em 28 de março, visando a criação de um mecanismo de seguro contra variações cambiais. Na prática, isso deve envolver sobretudo financiamento brasileiro para conferir liquidez ao comércio diante da escassez de reservas cambiais e financiamento externo que afetam a Argentina. Duas semanas depois, o governo argentino aproximou-se da oferta brasileira de liberalização de 90% do comércio do Mercosul com a União Europeia, com a perspectiva de alcançá-la no final de abril. Até então, cogitava-se que Brasil, Uruguai e Paraguai isolariam a Argentina fazendo uma proposta conjunta diferente dela. Aparentemente isso levou-a a ceder.
Não se sabe o que o governo e o empresariado brasileiro cederiam para fechar um acordo entre Mercosul e União Europeia, mas se sabe o que a União Europeia não cederá. Tendo rejeitado a liberação agrícola na OMC, é improvável que a União Europeia prejudique a agricultura em um acordo com o Mercosul. Não é este tipo de complementariedade que a Europa anseia com o Mercosul.
* Professor Associado do Instituto de Economia na Unicamp