-
Marcos Brindicci/Reuters - 11.dez.2015
Mauricio Macri, presidente da Argentina, presidiu o clube Boca Juniors entre 1995 e 2007
Auditores da Justiça vasculham repasse oficial bilionário ao Programa Fútbol para Todos, que financia a AFA e os clubes argentinos
No calor da campanha pela sucessão da presidente Cristina Fernández de Kirchner, a mais polarizada das últimas décadas na Argentina, partiu de uma parlamentar do partido Confianza Pública uma denúncia que põe em xeque um dos programas mais polêmicos dos anos Kirchner: o Fútbol para Todos (FpT). Iniciado em setembro de 2009, o programa estatizou as transmissões das partidas de futebol na TV pública argentina e canalizou recursos públicos para os clubes.
A promíscua relação entre política e futebol na Argentina, entretanto, está longe de ser uma novidade. Mauricio Macri, que sucedeu Cristina na presidência do país em dezembro, foi presidente do Boca Juniors entre 1995 e 2007. Da direção do clube saiu diretamente para eleger-se chefe de governo de Buenos Aires, um cargo análogo ao de governador de Brasília. De lá para cá, conquistou a Casa Rosada e prometeu continuar com o programa até pelo menos 2019. A despeito da investigação, aumentou o orçamento do FpT em cerca de 20% para 2016.
Macri, no entanto, quer que as transmissões dos jogos deixem de representar perdas para os cofres públicos. Para isso, tudo indica que seu governo vai flexibilizar a exclusividade de transmissão pela TV pública. Uma negociação com canais privados, revelada em 21 de janeiro, vendeu ao Grupo Clarín e à Telefónica os direitos de transmitir os jogos dos grandes clubes a partir de 5 de fevereiro por AR$ 150 milhões (R$ 42 milhões). Como o valor ainda está muito distante do custo anual do FpT, estimado em AR$ 1,8 bilhão (R$ 510 milhões) em 2016, a venda de espaço publicitário é o próximo passo na estratégia do novo governo.
A investigação sobre o FpT iniciada durante a campanha eleitoral partiu da denúncia de Graciela Ocaña, que fez oposição ao governo de Cristina como parlamentar da cidade de Buenos Aires. Ela questionou o aumento das verbas do programa sem previsão contratual e o destino do dinheiro. Os repasses do governo para a Associação Argentina de Futebol (AFA - equivalente à CBF) envolvem uma soma nada modesta: a estimativa inicial dos auditores do Judiciário que apuram a denúncia é de pelo menos AR$ 6 bilhões (R$ 1,7 bilhão) --bem mais do que estava previsto inicialmente. Ocaña, que não respondeu aos contatos da reportagem, já havia denunciado supostos desmandos e a falta de transparência de alguns funcionários de Cristina, entre eles Mariano Recalde, que foi presidente da estatal Aerolíneas Argentinas durante sua gestão.
Três auditores foram nomeados pela juíza federal criminal María Servini de Cubría, de Buenos Aires, que decidiu investigar como os cofres da AFA dispõem dos recursos públicos que recebem para organizar os dois principais campeonatos nacionais. No decreto do FpT, o governo se comprometeu a destinar "um mínimo" de AR$ 600 milhões (R$ 169 milhões) por ano à AFA, que deveria repassar parte da verba aos clubes a fim de resgatá-los de sua eterna penúria.
Na decisão em que autorizou o trabalho dos auditores, a juíza De Cubría estimou o repasse anual de AR$ 1,5 bilhão (R$ 420 milhões) apenas em 2015. O aumento é resultado de um adendo ao contrato entre o governo e a associação que representa os clubes --e poderia ser irregular do ponto de vista institucional. "Uma vez repassado à AFA, este dinheiro não tem qualquer tipo de controle", afirmou De Cubría.
Agora, os auditores analisam os balanços da AFA e dos próprios clubes, entre eles Boca Juniors, River Plate e San Lorenzo, o time do papa Francisco. Alicia López, auditora da Justiça que integra o grupo, já adiantou que os principais clubes argentinos seguem pressionados por dívidas crescentes e não há indícios de que melhoraram com a injeção de dinheiro público. Ela está trabalhando dentro da AFA e concluirá o trabalho nos próximos meses. Um dos casos mais emblemáticos é o do River Plate, atual campeão da Copa Libertadores. O River está entre os clubes mais endividados da Argentina: mesmo com as verbas do FpT, seu passivo financeiro deu um salto de 245% entre 2010 e 2015, segundo o balanço oficial.
Alejandro Pagni/AFP Jogadores de Boca Juniors e River Plate se desentendem durante partida
Jogada ensaiada
Quando criou o FpT, a viúva de Nestor Kirchner convenceu a AFA a rasgar unilateralmente um contrato com uma joint venture formada pelas empresas Torneos Y Competencias e o Grupo Clarín, com quem seu governo vivia às turras. A partir daquele momento, o Estado passaria a exibir o futebol sempre no canal da TV pública argentina.
No dia da assinatura do convênio com a AFA, Cristina foi à TV ao lado do ex-craque Diego Armando Maradona e do mítico Julio Grondona, que presidiu a entidade por 35 anos a partir de 1979 --quando os militares ainda mandavam na Argentina-- e ficou no cargo até morrer, em 2014. No discurso de lançamento do programa, Cristina alfinetou os adversários políticos, dizendo que nenhum canal a cabo privado de TV teria o direito de "sequestrar os gols (…) como sequestraram a palavra e as imagens" durante a ditadura. E foi assim, driblando os interesses do Grupo Clarín, que o governo comprou da AFA o direito de transmitir as partidas dos campeonatos da primeira e segunda divisão por dez anos.
O outro resultado imediato dessa jogada foi possibilitar a Kirchner e aliados fazer propaganda partidária de maneira "totalmente irregular" durante os jogos, diz o cientista político Pablo Secchi, diretor executivo da ONG Poder Ciudadano, capítulo da Transparency International em Buenos Aires. Nos intervalos e durante as partidas, o governo passou a controlar a publicidade e se impôs praticamente como único anunciante. Até o ano passado, só dividia o espaço com a Iveco, fabricante de caminhões Fiat na Argentina, único patrocinador privado do FpT.
O contrato entre o governo e a montadora também está sob investigação, uma vez que a publicidade seria paga em mercadorias e não em dinheiro. Pelo arranjo, a empresa fornecia caminhões pelo direito de mostrar sua marca durante os jogos. Procurada, a Iveco disse que o contrato é legal a despeito de sua forma de pagamento, que inclui dinheiro e caminhões. Segundo um porta-voz, a empresa não sabe se seguirá patrocinando as transmissões do FpT devido à troca de governo.
Em agosto de 2015, a ONG Poder Ciudadano enviou à AFA um pedido de informação sobre o uso dos recursos repassados pelo Estado, que há seis anos são transferidos à entidade máxima de futebol do país mediante modesto controle. Segundo Secchi, a organização que representa os clubes ignorou a demanda. Da mesma forma, não comenta a investigação determinada pela juíza De Cubría.
Quando os auditores começaram seu trabalho, a AFA se ocupava de organizar a eleição interna para escolher o sucessor de Grondona. No dia do pleito, em 3 de dezembro, a urna foi aberta com 76 votos divididos igualmente entre dois candidatos. Com um detalhe: havia apenas 75 votantes. A eleição foi suspensa, e adiada provisoriamente para 29 de junho deste ano.
As críticas ao FpT se estendem ainda à relação que se estabeleceu entre Grondona e a ex-presidente argentina, que o recebia na Casa Rosada para tratar dos aumentos de verbas do FpT, da segurança e até de horários e datas dos jogos, conforme revelaram escutas telefônicas autorizadas pela Justiça e reproduzidas pelo jornal "La Nación".
Na trave
À medida que se aproximava o primeiro turno da eleição geral, em 25 de outubro, a TV pública exibia nos placares eletrônicos dos estádios, com frequência cada vez maior, os nomes dos candidatos kirchneristas Daniel Scioli, Axel Kicillof e Aníbal Fernández, que foi chefe de Gabinete de Cristina. Fernández também é presidente licenciado do clube Quilmes e controlava toda a publicidade ligada ao futebol argentino por meio do FpT.
Para Felipe Solá, que concorreu ao governo da província de Buenos Aires no ano passado, a publicidade partidária por meio do programa FpT é um "escândalo." Em tom irônico, ele disse a alunos da Universidade de Palermo que "estaria de acordo" com os anúncios oficiais do FpT se fosse para promover a própria candidatura. Nas urnas, Solá ficou em terceiro lugar.
Embora ostensiva, a publicidade garantida durante as transmissões de futebol não assegurou vitória nas urnas aos candidatos de Cristina. Daniel Scioli, que queria sucedê-la na Presidência, só conquistou uma vaga no segundo turno da eleição. Aníbal Fernández perdeu a corrida ao governo da província de Buenos Aires para María Eugenia Vidal, primeira candidata não peronista a governar o Estado mais rico da Argentina em mais de 30 anos. Após tomar posse na Casa Rosada, Mauricio Macri prometeu dar continuidade ao FpT "reduzindo os custos de produção e eliminando as mensagens políticas durante as partidas".
Bola na área
O novo presidente Mauricio Macri e muitos outros políticos têm vínculos com clubes como uma forma de se tornarem conhecidos, afirma Victor Lupo, que foi dirigente do Racing há 20 anos e é autor de um livro sobre política desportiva na Argentina.
Essa relação é tão arraigada que, quando torcedores do Boca agrediram os visitantes do River Plate numa partida da Libertadores em maio de 2015, especulou-se que o ataque teria sido orquestrado para prejudicar a candidatura de Macri à Presidência devido à sua ligação histórica com o clube. Outra tese sustentava que o ataque teria sua origem numa disputa de poder dentro de La Doce, a poderosa torcida organizada do River.
A própria indicação do empresário Fernando Marín para presidir o FpT no novo governo reforça essas conexões. Macri dirigia o Boca quando Marín comandava o Racing e ambos integravam a AFA. O trânsito de Marín no mundo da bola se estende à mídia argentina: ele já dirigiu duas rádios locais e produziu programas de sucesso na TV. O novo dirigente do FpT já trouxe os grupos Clarín e Telefónica para compartilhar parte das transmissões e está em busca de anunciantes privados para igualar as receitas aos repasses que o programa faz à AFA.