Hospedando hermanos

ðAdalberto Nascimento

No delicioso livro "Tia Julia e o Escrevinhador", o autor - o peruano Mario Vargas Llosa - conta histórias hilariantes, dentre as quais a do novelista Pedro Camacho, um anão boliviano que em suas novelas ridiculariza de tal forma os argentinos a ponto de criar um problema diplomático entre a Argentina e o Peru.

Ao longo da minha vida, tive contato com pessoas de várias nacionalidades e concluí que a implicância com argentinos é um fato meio generalizado nos demais países da América da Latina. Na verdade, a bronca é contra a suposta arrogância dos argentinos oriundos da região de Buenos Aires - os portenhos. Constatei isso até na cidade argentina de Córdoba, uma bela cidade interiorana daquele país.
A nossa rivalidade para com os argentinos é incrementada por causa do futebol. Pessoalmente, gosto muito do futebol praticado por esse povo altivo e intelectualizado. Acho uma bobagem essa coisa de rivalidade, mas divirto-me com as constantes gozações mútuas entre brasileiros e argentinos.

Agora, com um papa argentino, piadinhas concernentes a esse fato já rodam pela Internet. Recentemente recebi uma conjectura, talvez de origem colombiana, que assim traduzi para o português: "É evidente que Francisco é um papa humilde. Fosse outro argentino, adotaria o nome de Jesus II".

Gozações entre países vizinhos são comuns em várias regiões do mundo. O ruim é quando a coisa atinge o nível do preconceito, o que sempre abominei. No livro "Causos da Casa do Politécnico" descrevo num dos meus textos, que transcrevo em seguida com algumas alterações e adendos, meu primeiro contato com argentinos.

Em julho de 1971, hospedei dois hermanos no apartamento 34 da Casa do Politécnico, situada no Bom Retiro, em São Paulo. Embora em mês de férias, eu não voltei pra Sorocaba porque estava estagiando e dando aulas particulares de reforço em matemática para três alunos do Colégio Dante Alighieri. Os argentinos, Norberto (com ascendência italiana) e Daniel (de origem germânica) ocuparam as vagas do Edmundo e Michel que, nas férias, inexoravelmente voltavam para Sorocaba. Éramos o trio de caipiras sorocabanos do 34.
A politécnica Luiza Yabiku (prima do vereador Yabiku) era uma frequentadora da Casa e tinha ido lá com alguém estudar para as provas substitutivas de agosto. Ao saber dos gringos, ofertou um apartamento de um tio, localizado em Santos - para eles conhecerem a beleza do nosso litoral.

E lá fomos. Eu dirigindo o fusca da Luiza e os gringos no banco de trás curtindo a Serra do Mar. Chegando à casa do tio da Luiza, uma péssima notícia. A chave do apartamento havia sumido. Um primo dela, do jeitão do Hiromi Sakoda (outro ex-morador da Casa e grande amigo de todos, já falecido), não teve dúvidas para solucionar o problema. Fomos até o apartamento, que ficava ao longo de um daqueles canais com dezenas de prédios iguais. Lá, o japa, no estilo Hiromi, simplesmente estourou a fechadura, restando um buraco circular na porta.

A Luiza voltou com o primo para a casa do tio e eu fiquei com os gringos naquele apartamento sem fechadura. À noite fomos dar uma paquerada na orla. Tomávamos umas cervejinhas numa lanchonete, quando uma mulatosa (ou seria afrodescedentosa, conforme essa hipocrisia do politicamente correto?) se engraçou com Norberto. E o casal sumiu. Depois de mais uns chopinhos, fomos, eu e Daniel, para o apartamento.

Quando estava amanhecendo, chegou Norberto esbravejando. Como não havia memorizado a localização do prédio, madrugou subindo e descendo escadas de dezenas de prédios até achar aquele em que, num quarto andar, tinha um buraco no lugar da fechadura.
Norberto era mesmo um atrapalhado. Voltamos e, do começo de uma tarde até ao meio da noite, jogamos futebol de salão naquela quadra não homologada pela FIFA que tínhamos na frente da Casa. Ele era bom de bola, mas não era bom da bola.
Estávamos, eu e Daniel, exaustos e fomos descansar. Norberto resolveu incursionar pela região em busca de alguma nova presa. Desta vez tinha certeza de como voltar para a Casa.

Depois de um tempo, voltou. Pegou um rolo de papel higiênico, sentou na cama e passou a cuspir sem parar em pedaços daquele papel. Daniel, intrigado, questionou: "¿Que pasa"?
Norberto havia grampeado uma gatona no Jardim da Luz. Depois de muitos beijos franceses trocados com a beldade (beijos bilíngues), sentiu algo estranho ao acariciá-la. Era um travesti.

Quando fui a Buenos Aires pela primeira vez, encontrei-me com Daniel. Lá, fui muito bem tratado, comprovando que a tal rivalidade entre nossos países é uma baita tolice. Naquela ocasião, iniciei o papo com Daniel, perguntando sobre Norberto. Ele informou-me, em termos de gozação, que o atrapalhado ficara tão traumatizado que acabou indo morar na Itália.

Adalberto Nascimento é engenheiro e escreve a cada duas semanas neste espaço, sempre aos domingos (dal@globo.com).

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