Fernando E. Solanas, um grande mestre do cinema argentino


Opositor da violenta ditadura militar argentina, o cineasta é autor de obras-primas, como "Tangos"

Há tempos estávamos devendo um preito a Fernando Ezequiel Solanas, um dos cineastas de excelente qualidade técnica, mas os filmes para a TV não o incluem e outros não conseguem entrar na programação rotineira. Embora projetado entre nós, um dos filmes de Solanas rendeu pouco, motivo pelo qual decidimos incluir observações relevantes sobre o grande "metteur-en-scène".

O cineasta argentino Fernando Solanas e um de seus principais filmes, "A Nuvem", de 1997

Diretor cinematográfico, roteirista, produtor, ensaísta, compositor e autor de canções e melodias que marcaram época, Fernando Solanas é considerado pela boa crítica internacional como um dos mais preeminentes cineastas da América Latina. Todos os seus filmes obtiveram prêmios da maior importância em festivais internacionais, sendo os quatro prêmios mais recentes os vencedores em Cannes ou Veneza e desfrutaram ampla distribuição em vários países incluindo o Japão e todos aqueles dos EUA e da Europa. Só isso bastaria para colocar Solanas entre os melhores "regisseurs" do nosso tempo.

Na Argentina, seus filmes famosos, "Tangos: Exílio de Gardel e Sul", foram sucessos de bilheterias vistos por mais de um milhão de espectadores, quando de seu primeiro lançamento produzido na Argentina pela Cinesur S.A. Combinando comédia e drama, o épico com as relações amorosas e o burlesco, a expressão poética com um rico conteúdo político-social, os filmes de Solanas têm sobressaído como genuína articulação da identidade da América Latina. Ao incorporar elementos do chamado realismo mágico, do surrealismo e das tradições grotescas do teatro local e acima de todos eles a música e as canções portenhas, os filmes de Solanas podem ser vistos como pesquisa e investigação para uma estética do "Sul". Em seu trabalho com a música Solanas se valeu das excepcionais qualidades de compositores famosos como Astor Piazolla, Egberto Gismontis e Gerardo Gandini.

O artista

Nem todos os críticos e analistas se recordam de quem foi nosso homenageado, mas Solanas nasceu em Olivos, Argentina, em 1936. Estudou leis, música, artes plásticas, teatro e principalmente o cinema, a 7ª Arte. Trabalhou e cresceu como crítico de cinema e música, além de escrever roteiros para "comic-strips" e livros sobre "filmmakers" ou cineastas. Solanas também ministrou cursos sobre filmes e temas nas universidades e academias, tanto na América como na Europa. Em 1966, juntamente com os cineastas Octávio Getino e Gerardo Vallejo. Não admira ter Solanas criado o grupo "Cine Liberación" e seu manifesto "Toward a "Third Cinema" (Rumo ao Terceiro Cinema) apresentou uma das teorias estéticas mais importantes do Novo Cinema da América Latina. O resultado desses esforços foi o emblemático e amplamente aclamado "A Hora dos Fornos" (The Hour of the Furnaces), de 1968, uma trilogia filmada clandestinamente e perseguida pelos ditadores argentinos de então. Unanimemente aclamada mundo afora pelo críticos de cinema, o filme de Solanas se tornou um clássico documentário político e um símbolo da cultura de resistência dos anos sessenta...

Durante o período 1971-75 Solanas fez seu primeiro filme "full-length", de longa metragem, "Os Filhos de Fierro". Inspirado pelo famoso poema gaúcho de "Martin Fierro", Solanas combinou formas de apresentação, variando de crônicas e cenas de massa dramatizadas para as "comic strips" (historietas cômicas em quadrinhos) e documentários. "Os Filhos de Fierro" é considerado como um dos seus trabalhos mais originais e louvados por críticos de vários países.

Em Paris

Perseguido pela abominável ditadura militar argentina, Solanas foi obrigado a exilar-se em 1976 com sua família e fixar-se em Paris em 1977. Lá, Solanas foi engajado por instituições francesas para filmar o documentário "The Look of the Others" (O Olhar dos Outros) acerca da inserção social de pessoas inválidas ou incapacitadas. Em 1981, Solanas começou a escrever o roteiro e preparar "Tangos: Exílio de Gardel", filme de categoria levado ao écran entre Paris e Buenos Aires. Não admira que Solanas tenha conquistado vários prêmios importantes no Festival de Veneza e impressionado muitos críticos europeus. O filme narra a odisséia de um grupo de exilados em Paris sob o fantasma de outros exilados famosos: O libertador San Martin e Carlos Gardel, o mítico cantor de tangos.

O Exílio de Gardel

"Tangos: Exílio de Gardel" é formalmente uma mistura de gêneros, mas acima de tudo uma comédia musical com uma história intimista e metáforas coreográficas plenas de humor absurdo valorizadas pela imagem de certos trechos onde Solanas deseja obter um efeito específico como recurso emocional. Com o retorno da Democracia na Argentina, Solanas teve a coragem de retornar a Buenos Aires onde em 1988 ele lança "South" (Sur), um filme sobre o amor e a volta ao lar, quando obteve a Palma de Ouro de Melhor Diretor no prestigioso Festival de Cannes. Revelando a história dos infortúnios do exílio interior, o filme representa um complemento para a película lançada três anos antes. Numa espécie de balada noturna impregnada de sonhos, medos e esperanças, um prisioneiro político é liberado no fim da ditadura portenha e retorna para sua vizinhança a fim de cuidar de sua mulher.

Sobre "A Viagem"

Em 1990, Solanas começa a trabalhar como afinco em "A Viagem", um projeto ambicioso sobre um jovem que viaja de bicicleta da Terra do Fogo no sul da Argentina para o México à procura de seu pai. Enquanto seja um "road movie" essencialmente latino-americano, o filme também comenta a história da corrupção política das novas democracias através dos "comic strips" e sátira. Em "The Voyage", Solanas começa a desenvolver uma estética do grotesco e do patético chamado por ele desde então de "grotetics". Por causa de suas denúncias de corrupção o presidente do país começa um processo judicial contra Solanas, vítima de seis balas nas suas pernas provenientes de um pistoleiro desconhecido. O filme foi concluído um ano depois e uma vez mais Solanas obtém prêmios e louvores no importante Festival Internacional de Cannes. Solanas é agora praticamente uma "persona non grata", mas a solidariedade e o protesto de democratas e profissionais amigos ajudaram Solanas a permanecer no seu país e também lhe deram o ímpeto de lidar diretamente com questões de ordem política.

Em 1993, parece ter sido ontem, Solanas foi eleito membro da Câmara dos Deputados. Em 1997, tendo completado um período de quatro anos como político, ele retorna triunfante ao cinema e filma "The Cloud" (La Nube), filme que ele apresentaria um ano depois no mesmo Festival de Veneza onde foi ovacionado pela plateia e fez jus a vários prêmios como cineasta de escol e democrata dos melhores e mais sinceros. Esse filme poético de Solanas oferece uma metáfora dos anos chuvosos e nublados e mostra as pessoas lutando entre a resignação e a esperança numa sociedade ferida pela corrupção e abuso dos poderosos do dia.

Ficamos por aqui, não sem antes traduzir a Carta de Solanas a Los Espectadores incluída nesta mesma página. Ei-la:

"Quero contar-lhes que ´A Nuvem´ se desenvolve no cenário de uma cidade onde chove desde faz mais de 1600 dias, e a vida transcorre normalmente enquanto alguns retrocedem e outros avançam. O filme narra os esforços, alegrias e desventuras de um grupo de atores que defendem seu velho teatro independente a ponto de ser vendido. Estão acossados pelos problemas quotidianos e seus próprios conflitos: o amor, a solidão, a busca de empregos, a criação, a reclamação da Justiça, a espera. São cenas que passam do cenário à vida e da vida ao teatro. Entre a esperança e a resignação, os personagens resistem com dignidade o retrospecto dos tempos nublados. O espírito que os sustém está impregnado de fidelidade a seus princípios e a todo aquele que não quer perder. Por último, quero dizer que junto a dezenas de técnicos e artistas temos realizado este esforço por um cinema que busca, desde a reflexão, a ironia e o humor para pensarmos como sociedade.!

Queridos amigos, aqui está La Nube. Foi feita desde a paixão e agora é de vocês".

L.G. DE MIRANDA LEÃO*
ESPECIAL PARA O CADERNO 3

*Crítico de cinema, autor de "Analisando Cinema" e "Ensaios de Cinema"

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