Especialistas em Direitos Humanos falam sobre justiça de transição …

“Privatização da rede de telefonia, da aviação e do petróleo não teria ocorrido se não houvesse trabalho prévio através do terror”, afirmou Luís Hipólito Alén | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Natália Otto

Na manhã desta quinta-feira (25), especialistas em direitos humanos reuniram-se no Salão Nobre da faculdade de direito da UFRGS, em Porto Alegre, para o painel “Avanços da implementação de medidas da Justiça de Transição do Cone Sul”, que integrou o evento Justiça Democrática de Transição – Ditadura, Direitos Humanos e Políticas de Memória, ocorrido na faculdade de 24 a 26 de outubro.

O diretor nacional de direitos humanos da Secretaria de Educação e Cultura do Uruguai, Javier Miranda, e o subsecretário nacional de proteção de direitos humanos da Argentina, Luís Hipólito Alén, trouxeram as experiências de seus países sobre comissões da verdade para o debate e dividiram a mesa com o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão Pires Junior e o desembargador Rogério Gesta Leal.

O Sul21 conversou com Miranda e Alén sobre justiça de transição, julgamento de ditadores e violadores de direitos humanos, o impacto econômico das ditaduras no Cone Sul e as expectativas para a comissão da verdade brasileira.

A verdade existe para além do judiciário

O uruguaio Javier Miranda terminou sua fala para a plateia de universitários com uma provocação: “A verdade de um tribunal é a verdade que buscamos?”. Em entrevista, o diretor afirma que a fala foi um apelo para que se crie um “discurso coerente” a respeito da penalização dos perpetuadores da ditadura. “Acredito que submeter os ditadores ao juízo penal é absolutamente necessário. Mas, como no caso de uma delinquência comum, se deve justificar a sanção penal. Caso contrário, corremos o risco de alimentar o discurso da vingança”, afirmou.

Para Miranda, também é preciso entender que o judiciário jamais contemplará toda a verdade a respeito da época e do sofrimento da população do país em questão. “Em um processo judicial, os fatos utilizados são aqueles que cabem à finalidade do processo, que é identificar quem cometeu a conduta ilícita e aplicar uma pena. Mas, no que diz respeito à memória, os fatos são mais amplos”, explicou. “Por exemplo, é preciso levar em conta o contexto histórico das violações ocorridas e as motivações por trás disso. E isso um processo judicial não é capaz de abrigar”, argumentou.

Luís Hipólito Alén acrescenta que, na Argentina, o julgamento penal dos violadores de direitos humanos serviu também como reafirmação da institucionalidade jurídica. “Quando reabrimos os processos em 2003, havia quem sugerisse que levássemos as acusações para tribunais especiais ou internacionais. Mas decidimos julgá-los nos tribunais comuns, que julgam qualquer pessoa”, contou o subsecretário. “Porque os próprios administradores da Justiça foram funcionários da ditadura, e desta forma nós recuperamos a Justiça como órgão de proteção dos direitos”.

“O Brasil deve dar uma chance à Comissão da Verdade”, aconselhou o uruguaio Javier Miranda | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Países do Cone Sul começam a se recuperar da imposição do neoliberalismo

Para Alén e Miranda, a reabertura dos processos não leva à investigação apenas de indivíduos, mas de toda uma sociedade. Por isso, é preciso pensar o contexto histórico e econômico nos quais os golpes militares estiveram inseridos.

Alén conta que, na Argentina, na década de 1945 a 1955, houve uma erupção da classe trabalhadora na cena política e, por consequência, uma política de distribuição de riqueza que chegou a colocar 55% da renda per capita do país nas mãos dos trabalhadores. “Esta é uma porcentagem que não vamos chegar nunca mais”, lamentou o subsecretário.

“Os golpes militares, iniciados em 1955, vieram para assegurar a hegemonia das classes dominantes. E este processo de reorganização nacional de acordo com o novo modelo econômico teve tanta força que impossível pensar o neoliberalismo selvagem dos anos 90 sem essa ditadura. A privatização da rede de telefonia, da aviação e do petróleo não teria ocorrido se não houvesse esse trabalho prévio de disciplinamento através do terror”, pontuou.

Já Javier Miranda acredita que o Uruguai, a Argentina e o Brasil estão se recuperando da imposição do modelo neoliberal pelas ditaduras. “Creio que esse modelo começou a se reverter, notoriamente, nos três países a partir dos anos 2000. Hoje o modelo neoliberal puro está fortemente questionado”, explicou.

Diretor nacional de direitos humanos da Secretaria de Educação e Cultura do Uruguai se diz “muito preocupado” com tendência a comparar violência de Estado com setores insurgentes | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

O diretor afirmou a incorporação de políticas de direitos humanos é um indício importante desta mudança. “A base de uma política de esquerda é a defesa dos direitos humanos. José Saramago dizia: queres um programa de esquerda? Se chama Declaração Universal dos Direitos Humanos”, disse.

Para os especialistas, pedidos de que se investiguem os crimes cometidos pela resistência na Comissão da Verdade são infundados

“Estou muito preocupado com essa tendência dos setores mais conservadores da sociedade de comparar a violência do Estado com a violência da insurgência, sobretudo através da etiqueta do terrorismo”, lamentou Javier Miranda, referindo-se às críticas de determinados setores da sociedade brasileira que pedem a investigação também dos grupos de luta armada da ditadura militar.

“Sem dúvida a parte da população civil que tomou armas para enfrentar o governo estava cometendo delitos, mas estes crimes foram julgados na época, alguns até com abuso de poder”, afirmou o uruguaio. Ele ponderou que a reflexão história sobre os crimes das guerrilhas deve ser feita, mas não no âmbito penal. “O objeto da Comissão da Verdade são os crimes cometidos pelo Estado”, sentenciou.

“A alcunha de terrorismo, para mim, é um excesso. O terrorismo implica uma ação violenta para gerar terror na população, o que, no Uruguai, por exemplo, posso assegurar que não ocorreu. Se fosse o caso, chamaríamos Artigas, San Martín e Bolívar de terroristas”, argumentou.

Para Alén, as condições que levaram a juventude argentina a voltar-se às armas foram muito fortes: “Naquele momento, não se podia votar, não se tinha nenhum direito. A isso se somavam os exemplos da Cuba e da independência da Argélia, que provavam que mesmo o mais poderoso dos exércitos poderia ser derrotado.”

O subsecretário afirma que o maior erro da Comissão da Verdade argentina foi iniciar seu informe falando de violência cruzada. “Não houve violência cruzada, não houve dois demônios”, indigna-se. “Havia um só demônio, que respondia a interesses concretos. A sociedade talvez estivesse errada, mas lutava por uma vida melhor da única maneira que encontrou”, conclui.

Mesmo com integrantes ligados à ditadura, comissão argentina que apurou crimes de regime de exceção abriu canal impossível de deter, diz Luis Hipólito Alén | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A abertura de processos mexe com o imaginário e reacende o espírito político da nova geração

“O Brasil deve prestar atenção em seu processo de estabelecimento da Comissão da Verdade, criar condições para que ela avance e, principalmente, dar-lhe uma chance”, aconselhou Miranda. Ele contou que, antes da fundação da Comisión para la Paz, no Uruguai, em 2000 havia dúvidas se ela deveria ser feita. “Bom, uma mãe de um desaparecido me disse: abriram a porta um pouco, vamos enfiar o pé na fresta para que não feche e empurrar até que abram”, lembrou.

Alén explicou que a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas, da Argentina, foi muito criticada à época de sua fundação, em 1983, por ter integrantes que participaram da ditadura. Porém, ele afirmou que “a importância da Comissão transcendeu os nomes que a integraram, porque a partir de lá se abriu um canal tão profundo que não foi possível interrompê-lo”.

O subsecretário, que leciona na faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, disse que notou um aumento da atividade política dos jovens após a reabertura dos processos. “Isso provocou a volta da juventude às lutas políticas, que não se via desde o retorno da democracia. A reconstrução das histórias dos militantes causou uma identificação entre os jovens, que também perderam o medo de sofrerem violência por causa de suas demonstrações políticas”, explicou.

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