Entrevista Pierre Salama/Universidade de Paris XIII (1ª parte)
09/11/2012 - 21:00:57
Presença no Brics "mitifica" o papel do Brasil no mundo atual
Autor de vários livros ligados à economia mundial e ao Terceiro Mundo, Pierre Salama professor de economia internacional na Universidade de Paris XIII, acaba de lançar, na França, Les économies émergentes latino-américaines, entre cigales et fourmis (As economias emergentes latino-americanas: entre cigarras e formigas) - La maison d"édition: Armand Colin, collection U.
No livro, Salama afirma que o Brasil está sendo mitificado por integrar os Brics, ao lado de Rússia, Índia, China e África do Sul.
"O Brasil se beneficia do efeito da projeção da imagem da China e da Índia. Dá uma ilusão de que é uma economia em plena expansão. Claro que o crescimento é mais elevado do que nas décadas perdidas, mas ainda é modesto em comparação com os asiáticos. E novas vulnerabilidades ameaçadoras surgem", alerta o professor, chamando à atenção para dois efeitos perversos da abertura financeira: valorização cambial e reprimarização da produção.
As mudanças nos conceitos "países semi-industrializados" inicialmente, "novos países industrializados", três décadas atrás, "países emergentes", hoje, indicam uma crise ou as transformações porque passam esses países, com um deslocamento do centro de gravidade do mundo?
Traduzem as transformações que sofreram esses países e um deslocamento do centro de gravidade do mundo. Os dragões asiáticos começaram a se impor cada vez mais. Seu crescimento repousou sobre a conquista de mercados externos. Já as economias latino-americanas estavam enredadas na questão da dívida externa.
Esta década foi feliz para alguns asiáticos, com redução da pobreza. No entanto foi perdida na América Latina, que apresentou aumento da desigualdade. Tudo parecia novo e diferente. Dessa maneira, criou-se a expressão "novos países industrializados" (NPI, na sigla em português).
Onde se deu o deslocamento do centro de gravidade?
Já nessa época os chamados "dragões asiáticos", aos quais se juntaram os Tigres - Malásia, Indonésia, Tailândia, Filipinas e, um pouco mais tarde, o Vietnã - começavam a mexer no equilíbrio do comércio internacional. Nos anos 90, ocorre a emergência da China, com o seu 1,3 bilhão de habitantes, e Índia , com 1 bilhão.
Dessa vez já não se tratava de pequenos países, mas continentais, que entravam com força na economia mundial. Hoje vivemos os anos da consagração da China, com altas taxas de crescimento sustentado, balança comercial superavitária, reservas consideráveis. A China tornou-se fábrica do mundo e, com Brasil, Rússia, Índia e África do Sul, hoje constitui o Brics, um grupo heterogêneo e de interesses freqüentemente divergentes, mas com um peso tal, que não se pode mais tomar decisões sem a sua participação. Se agregarmos outros países asiáticos e latino-americanos, confirmaremos que essas economias denominadas emergentes adquiriram peso grande.
Esse deslocamento se restringe à Ásia, em detrimento da América Latina?
A América Latina de hoje é mais aberta do que no passado, mas seu peso para as exportações mundiais permanece semelhante, à exceção do México, com maquiadoras. A América Latina se reprimariza de forma preocupante desde o inícios dos anos 2000. Quem poderia imaginar que certos países importantes, como o Brasil, iriam retomar o processo de exportação de produtos primários, voltando à sua especialização do passado, aprofundando suas restrições externas, atrair capitais ao preço da apreciação de sua taxa de câmbio?
Então, a América Latina não é mais a de ontem, mas conserva suas características fundamentais. Resultou em economias mais abertas, porém reprimarizadas. No entanto, a história sempre nos reserva surpresas. O jogo dos interesses nacionais é complexo, e tudo depende muito da maneira com que os países enfrentam restrições internas e externas.
Como os emergentes estão enfrentando suas restrições?
Países emergentes são profundamente heterogêneos. Apesar dos interesses comuns, reproduzem relações de dominantes e dominados entre eles. O Brasil, por exemplo, está sendo mitificado por integrar os Brics. Se beneficia do efeito da projeção da imagem da China e da Índia. Dá uma ilusão de que o Brasil é uma economia em plena expansão.
Claro que o crescimento é mais elevado do que nas décadas perdidas, mas ainda é modesto em comparação com asiáticos. E novas vulnerabilidades ameaçadoras surgem. Como Argentina e Chile, Brasil sofre dominação da China, que vende bens manufaturados e compra produtos primários. Reproduz assim uma antiga divisão internacional do trabalho.
A China é um cliente muito importante para o Brasil, mas, para eles, o Brasil não representa quase nada no comercio exterior. É uma correlação de forças desfavorável para o Brasil e para seus vizinhos, Argentina e Chile sobretudo.
Quais são as características principais da desindustrialização precoce na América Latina?
Quando os países avançados começaram sua desindustrialização, a renda per capta era o dobro daquela com a qual estamos passando por esse processo. A desisdustrialização em alguns países emergentes se refere, não somente à baixa relativa e absoluta dos empregos industriais e à destruição de parte do tecido industrial, levando à produção de não sofisticados. Em países como Peru, Chile, México e Brasil, o crescimento com desindustrialização acontece juntamente com a manutenção de comportamentos rentistas, dirigidos mais às atividades financeiras do que ao setor primário. Na Ásia, a abertura econômica se deu com industrialização das economias. Então são fenômenos diferentes. Requer, para a América Latina, modificar o comportamento rentista dos investidores.
Como modificar esse comportamento rentista?
Estimulando a inovação sobre produtos de ponta. Requer comando estratégico do Estado. Economia aberta não é aquela que se oferece aos interesses exteriores, como e no livre comércio. Uma abertura controlada permitiria que o país se preparasse para as mudanças necessárias. Com câmbio livre, é muito provável que a desindustrialização seja precoce.
Requer medidas de políticas econômicas novas, para inverter a tendência, favorecendo investimentos estratégicos, combinado com protecionismo temporário e seletivo. Uma política nova exige esforço particularmente importante em matéria de educação, dotar a juventude da capacidade de dominar técnicas cada vez mais complexas, orientando-as para a produção com mais valor agregado. Exige esforço sério em matéria de pesquisa e desenvolvimento, como nos Dragões Asiáticos, sobretudo na China. Com relação a isso, a América Latina tem muito que aprender.
Há diferenças entre os caminhos escolhidos por Brasil, Argentina e México?
Comparar Brasil, Argentina e México é uma fonte de ensinamentos. O México é aberto, sua taxa de câmbio se apreciou, mas, ao contrário de Brasil e Argentina, o saldo comercial é deficitário. Entre 10% e 15% são produtos petrolíferos, com preços voláteis. Os 90% restante das exportações mexicanas são de produtos manufaturados, metade destes provêm das maquiadoras, produção praticamente destinada a EUA e Canadá, à exceção da indústria automobilística.
Outra metade das manufaturas mexicanas é dirigida ao mercado interno. Maquiadoras têm valor agregado baixo, influenciam pouco no crescimento. Os salários são baixos. O crescimento das exportações é forte, mas com pouco efeito multiplicador.
Na Argentina, o peso crescente dos produtos primários, contribui contabilmente para o PIB, mas com poucos empregos e efeitos reduzidos na economia, a não ser máquinas agrícolas. Contrariamente à tese liberal de que o livre comércio estimula crescimento, essa relação é complexa porque a identificação entre abertura e liberalização é equivocada. Um país pode se abrir, desde que controle via política industrial adequada, como os asiáticos. E a relação entre abertura e crescimento depende também da natureza dos produtos exportados.
Rogério Lessa