Em São Paulo, parentes de mexicanos sumidos denunciam …

Vanessa Oliveira, especial para RFI Brasil

Oito meses depois, o drama de Iguala, no estado de Guerrero, ainda ecoa. Isso porque o sequestro coletivo escancarou práticas criminosas do Estado Mexicano, como o envolvimento do poder público com o narcotráfico e a corrupção da polícia e do Exército. Na busca por respostas e justiça, pais e colegas das jovens vítimas tentam comunicar ao mundo o que aconteceu em Guerrero. Por mais legítima que seja a causa, os ativistas não foram recebidos por nenhum governo.

“Não tivemos nenhuma resposta, muito menos das autoridades estrangeiras”, conta Hilda Hernández, mãe do estudante Cezar Manuel González, ainda desaparecido. “Por suas razões diplomáticas, eles não podem jogar coisas um contra o outro. O povo e os movimentos sociais têm nos apoiado. E, com isso, nos sentimos bem, nos sentimos acolhidos. Não temos necessidade de ter qualquer contato com outros governos. Seria o mesmo que no México. Como estamos vendo, é tudo igual”.

As viagens da Caravana 43 têm como objetivo denunciar crimes de Estado recorrentes no México, mas têm servido também à troca de experiências e ao aprendizado coletivo de como transformar a dor em luta. Hilda e os demais componentes do grupo se reuniram na última terça-feira (2) com as Mães de Maio de São Paulo, grupo formado por parentes das vítimas de uma série de chacinas que aconteceu nas periferias paulistas em 2006.

“A polícia criminaliza a pobreza”

O encontro com as ativistas brasileiras serviu para mostrar que a luta atravessa as fronteiras. E o descaso também: “É muito parecido com o México. Pensávamos que éramos os únicos que viviam isso, mas na realidade quando você sai um pouco, você se dá conta de que isso acontece com toda a América Latina”. Débora Maria, fundadora do Movimento Mães de Maio de São Paulo e mãe de um dos mais de 400 jovens assassinados em maio de 2006, concorda que há vários pontos em comum com a luta dos mexicanos. A começar pela "política autoritária do Estado, que criminaliza a pobreza, e a certeza da impunidade".

Assim como no México, as vítimas brasileiras têm endereço: "Esse genocídio é contra os pobres. Existe uma ditadura [no Brasil], que nunca acabou. Ela está enraizada na nossa periferia e ela age contra pobres e negros. Com o aval inclusive do Ministério Público, que tem o dever de fazer o controle externo das ações das polícias e não o faz. É o que chamamos ‘bancada da caneta assassina’, que mata nossos filhos dez vezes mais do que quem aperta o gatilho", dispara.

Débora reforça o que a Caravana tem dito em suas andanças pela América do Sul: "É importantíssimo uma luta unificada contra o Estado punitivo. Se há uma globalização desse Estado punitivo na América Latina, porque não unir a resistência e globalizar também a luta?" Para Hilda, essa é, sem dúvidas, a grande missão da Caravana: "ter uma só voz. Porque, se não brigarmos, eles vão continuar nos massacrando. E não queremos mais isso. Queremos viver tranquilos em nossos países, sem que sejamos pisoteados o tempo todo”.

Solidariedade popular

De acordo com o professor e jornalista Carlos Fazio, que acompanha e analisa o caso de Ayotzinapa desde o início, essa união ganha cada vez mais força, ainda que as autoridades não estejam dispostas ao diálogo: “O que estamos vendo é que, mesmo em governos progressistas, existe essa distância entre as classes políticas e os grupos sociais. Ainda assim, nesses países – e eu acompanhei o que aconteceu em Montevidéu [durante a passagem da Caravana] –, todo o setor da sociedade que passou pela tragédia do desaparecimento forçado, execuções sumárias e tortura mostrou seu apoio aos estudantes. Ou seja, pelo povo e talvez até pelos novos meios de comunicação, esse assunto foi comentado e o movimento dos pais desses estudantes foi muito bem acolhido”.

Fazio comenta também que, se existe um lado bom no limite a que chegou a situação da segurança pública no México, é que ela gera visibilidade. “O México e o governo de Peña Nieto estão sendo observados pelo mundo. Vocês mesmo, da Rádio França Internacional, estão falando do México; e não porque Peña Nieto seja o salvador do país, como uma vez escreveu a revista Time. Vocês estão falando do México hoje por causa da violência, da violência criminal. Aqui, temos crimes contra os direitos humanos. E, no caso de Ayotzinapa, configura-se tortura, desaparecimento forçado e a execução extrajudicial. Isso é o que faz com que esse movimento tenha essa visibilidade midiática em todo o mundo. Ou seja, estamos falando de crimes de Estado”.

As veias abertas de Ayotzinapa

De acordo com o relato dos sobreviventes, na noite de 26 de setembro do ano passado, um grupo de policiais fuzilou um ônibus que transportava estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa. Os jovens participavam de um evento de coleta de fundos para a manutenção de uma escola da região e assistiriam à marcha nacional em memória dos estudantes mortos em 1968, marcada para o dia 2 de outubro, na cidade do México.

Três dos cinco ônibus do comboio se perderam e foram atacados pela polícia. Os estudantes revidaram com pedras, mas, pouco antes de retomarem o caminho, um novo ataque aconteceu e um dos ônibus não conseguiu escapar. Da noite do dia 26 à madrugada do dia 27 de setembro, os estudantes sofreram quatro ataques. Seis pessoas morreram, 29 ficaram feridas e 43 ainda estão desaparecidas.

O prefeito da cidade de Iguala, José Luis Abarca, e a sua mulher, María de Los Ángeles Pineda, acusados de serem os mandatários do atentado, foram presos. Apesar das tentativas do Estado mexicano de encontrar uma versão para o que aconteceu, até hoje os crimes não foram esclarecidos.

Eleições sangrentas

Entre protestos e tensões políticas, os mexicanos vão às urnas para as eleições locais e legislativas no próximo domingo (7). E, há algumas semanas, acontece uma violenta campanha de intimidação, que já causou uma dezena de mortes, todas de alguma maneira ligadas ao pleito. O assassinato mais recente aconteceu no início desta semana. O candidato a deputado federal pelo partido de centro-esquerda PRD (Partido da Revolução Democrática), Miguel Ángel Luna Munguía, foi morto a tiros na periferia da Cidade do México.

Para Fazio, esse contexto dificulta um prognóstico, porque “existe um setor da sociedade consciente, que está pedindo a anulação consciente do voto. Por exemplo, existe uma proposta de que se coloque nas cédulas o numero 43, com uma frase que poderia ser: ‘vivos os levaram, vivos os queremos’, que é a velha frase de ordem sobre os desaparecidos políticos no México, (criada) durante a guerra suja dos anos 70. Mas esse movimento de voto nulo já aconteceu em 2009, quando os ‘nulistas’ obtiveram seis por cento. Então, não sabemos se, em estados como Oaxaca, por exemplo, as eleições vão acontecer”.

As eleições parlamentares de 2015 são o primeiro teste político para o presidente Enrique Peña Nieto, que começou seu mandato em 2012 e deve ir até 2018. Os eleitores renovarão neste fim de semana 500 deputados federais, os governadores de nove dos 32 estados mexicanos e quase 900 prefeituras, além de escolher representantes para outros cargos locais.

A Caravana 43 volta para o México depois das eleições. Nesta semana, o grupo ainda passa por Porto Alegre e Rio de Janeiro, onde estão previstas coletivas de imprensa e novos encontros com movimentos sociais. Visitas pelo resto da América Latina e Caribe estão nos planos, mas ainda sem datas definidas.

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