Documentos apontam corrida nuclear na América Latina durante a …

BOMBA ATÔMICA

Projeto de produção da bomba atômica começou como plano para assegurar hegemonia bélica no continente; depois, virou obsessão

FRANCISCO LEALI E ROBERTO MALTCHIK O GLOBO

Os generais-presidentes Figueiredo (Brasil) e Videla (Argentina), durante vista do brasileiro a Buenos Aires/ReproduoOs generais-presidentes Figueiredo (Brasil) e Videla (Argentina), durante vista do brasileiro a Buenos Aires/Reprodução

Secretos, ultrassecretos e confidenciais, os arquivos da ditadura revelam que os governos militares alimentaram um projeto de produção da bomba atômica brasileira em meio a uma disputa com a Argentina para dominar a tecnologia. Se no início do regime a fabricação do artefato era apenas um plano para assegurar a hegemonia bélica no continente, no governo do general João Figueiredo, virou uma obsessão.

O desenvolvimento da bomba era a parte sigilosa do programa nuclear brasileiro que agora pode ser recontada com documentos oficiais desclassificados. A versão sul-americana da corrida armamentista está registrada nos arquivos guardados por anos no Conselho de Segurança Nacional (CSN), no Serviço Nacional de Informação (SNI), na Marinha e Aeronáutica. Arquivos secretos da ditadura reúnem despachos, informes e relatórios elaborados em Brasília e também na embaixada brasileira em Buenos Aires. Todos com o mesmo tema: o temor de que a Argentina pudesse detonar os primeiros testes com explosivos nucleares.

Os documentos mostram que, em 1981, o governo decidiu por a estrutura da comunidade de informações para tentar obter o maior número possível de informações sobre o programa nuclear da Argentina. Ao mesmo tempo, sob o controle direto do então chefe do gabinete militar da presidência da República e secretário-geral do Conselho de Segurança, general Danilo Venturini, um grupo de oficiais no Centro Técnico Aeroespacial (CTA) da Aeronáutica dava início à tentativa de desenvolver a bomba brasileira. As pesquisas eram custeadas por verbas secretas para fugir do controle de organismos internacionais que monitoravam de perto a versão oficial do programa nuclear brasileiro.

“Naquela época era assim: rasgue primeiro, leia depois”, brinca o ex-ministro do Superior Tribunal Militar e ex-diretor do CTA, brigadeiro Cherubim Rosa Filho.

“Estávamos desenvolvendo no CTA, com verba secreta federal, um artefato nuclear. Mas no governo Sarney faltou verba e depois, no governo Collor, veio a decisão política de não mais fabricar. O artefato é um produto que permite desenvolver várias outras tecnologias paralelas com aplicações em inúmeras áreas. Daqui a 20 anos vamos saber se essa decisão foi acertada.”

Medo da bomba argentina – Os registros que expõem os detalhes da estratégia adotada pelo governo militar estão descritos em documentos encontrados pelo Globo no acervo do Conselho de Segurança Nacional e também do SNI, guardados no Arquivo Nacional. O jornal ampliou a pesquisa via Lei de Acesso à Informação para requisitar papéis sobre o tema ainda sob a guarda da Força Aérea Brasileira, da Marinha e do Ministério das Relações Exteriores.

No dia 5 de agosto de 1981, um “estudo sucinto” produzido pela secretaria-geral do CSN disparou o alerta com timbre de informação ultrassecreta: “A Argentina possui condições de fabricar um artefato nuclear em prazos mais curtos do que o Brasil”. Com o título “Acompanhamento comparativo do desenvolvimento nuclear entre Brasil e Argentina na expressão militar”, o documento explica que o estudo foi produzido para “permitir conhecer com a antecedência adequada o desenvolvimento de explosivos nucleares na Argentina, possibilitando a tomada de decisão do governo brasileiro”.

A suposta supremacia argentina no setor ecoou entre os oficiais-generais. Na época, o programa nuclear brasileiro apostava em várias direções, e sofria com a falta de planejamento e de recursos, depois de um gasto extraordinário com o acordo firmado pelo presidente Geisel com o governo alemão para que o país pudesse enriquecer urânio e construir as usinas de Angra 2 e 3.

Hoje, sabe-se que a transferência tecnológica esperada pelo Brasil jamais ocorreu, e que a parceria tão somente serviu de impulso ao desenvolvimento da indústria nuclear da Alemanha, com recursos brasileiros, e à construção, em passos lentos, de Angra 2. O mais importante – aprender a enriquecer urânio em escala industrial – ficou só no papel.

As várias frentes abertas para o desenvolvimento da energia nuclear tinham o propósito claro de, em última instância, ajudar o país a desenvolver explosivos nucleares e, assim, superar os argentinos na corrida pela bomba.

O estudo de 1981 definiu uma estratégia de atuação da comunidade de informação. Sugeria que era preciso verificar a situação de instalações nucleares argentinas, monitorar um acordo de cooperação entre Argentina e União Soviética, identificando se técnicos russos estavam visitando o país sul-americano. Recomendava que brasileiros participassem de eventuais cursos de treinamento que a Argentina pudesse patrocinar, e defendia uma intensificação de cooperação bilateral na área de segurança nuclear com os vizinhos com reuniões periódicas.

O primeiro encontro deveria ser na Argentina, para que os militares pudessem aproveitar a oportunidade para visitar as instalações nucleares daquele país.

Os arquivos do SNI guardam uma série de documentos sobre “a bomba argentina”. Em 1982, relatório produzido por agentes do serviço de informações lotados na embaixada brasileira em Buenos Aires foi enviado para agência central em Brasília.

“Líder absoluta nesse campo (nuclear) na América Latina, a Argentina torna-se, a cada dia, o mais forte candidato do Terceiro Mundo ao ingresso no Clube de Londres, que reúne as potências nucleares”, diz o documento.

Em meio às dificuldades financeiras que a Argentina enfrentava, os agentes concluíam, no entanto, que, no momento, o país não estava construindo sua bomba.

Em fevereiro de 1983, ano em que a Argentina elegeria um presidente civil, um oficial do Exército brasileiro que atuava como adido em Buenos Aires escreveu relatório lembrando que, apesar da derrota na guerra das Malvinas, os militares argentinos continuavam dispostos a ter um artefato nuclear.

“Pode-se dizer que êxito da política nuclear, se deve a uma firme resolução de fazer com que a Argentina ingresse no clube das potências nucleares, e disponha de um argumento forte e ameaçador, dada a imprevisibilidade de seus dirigentes político-militares – como bem o demonstrou, recentemente, o conflito com a Inglaterra pela posse das Malvinas –em qualquer mesa de negociações diplomáticas. O fato da Argentina vir a possuir o artefato nuclear poderá significar um fator preponderante de desequilíbrio do Poder Militar, ou mesmo do Poder Nacional do Brasil, bem como de qualquer coligação a seu favor”, diz o relatório.

Documentos sobre o temor argentino se repetiriam até 1986. Figueiredo também recebeu relatos, como o informe do CSN, em 21 de fevereiro de 1985, levantado pelo pesquisador Matias Spektor, do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da FGV, que aponta para a necessidade do “desenvolvimento de explosivos nucleares para fins pacíficos” e da capacidade para produzir plutônio, cujo único objetivo é fazer a bomba.

“Sempre houve a disposição de fazer a bomba entre os militares. Porém, jamais se deu a ordem presidencial que precisava para se fazer o artefato nuclear”, acredita Spektor.

Praticamente todos os projetos encaminhados ao gabinete presidencial foram abandonados ao longo do caminho, à exceção do plano da Marinha para enriquecer urânio, comandado pelo almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. A prestação de contas dos prejuízos de tempo e dinheiro que se acumularam no caminho, porém, continuará sendo uma incógnita.

Leave a Reply