19/07/2013- 11h22
BUENOS AIRES - Almoço no “Estación Norte”, restaurante do Barrio Norte, quase em frente a um dos apartamentos em que a família viveu durante meu período como correspondente em Buenos Aires (1981/83).
Sobre a mesa, uma revista já velha (de fevereiro) fala, na capa, dos 60 anos de Cristina Fernández de Kirchner, a presidente.
Pergunto ao dono o que acha dela. Ele demora para responder. Depois de um tempinho, resmunga algo como “bom, você vê como está Buenos Aires”, o que só pode ser entendido como uma crítica porque, obviamente, a cidade já viveu dias melhores.
Por fim, emenda: “Mas a culpa não é dela. É dos argentinos. Estamos sempre com os mesmos partidos”.
A frase desencadeia o apertar da tecla rebobinar na minha memória, que volta velozmente a 1977. Jantar em Madri com dois notáveis jornalistas, o argentino José María Pasquini Durán e o brasileiro Newton Carlos, um dos pioneiros – e brilhante – na análise de fatos internacionais no jornalismo brasileiro.
Pasquini fugia da ditadura que se instalara no ano anterior. Sorvia cada colher do doce de leite, sobremesa nacional argentina, como se fosse a última. Falava de seu país como se fosse vítima de alguma maldição, como se os argentinos, todos, tivessem jogado uma pedra na cruz e Deus decidira castigá-los com sucessivas ditaduras militares.
A melancolia de Pasquini dava para entender. A sucessão de ditaduras de fato só podia fazer o país retroceder. É impossível organizar alguma coisa quando se passam 60 anos sem que um presidente civil legitimamente eleito entregue a faixa presidencial para outro civil de origem igualmente legítima.
Mas a melancolia do dono da “Estación Norte” não é razoável. Pena que seja mais ou menos disseminada, como se deduz da análise, para o sítio Infolatam, do historiador Luis Alberto Romero, para quem seu país está vivendo a fase final de “uma Argentina vital, pujante, sanguínea y conflitiva, que se construiu no final do século 19 e ainda era reconhecível ao concluir a década de 60. A partir de 1980, ao contrário, vivemos em uma Argentina decadente e exangue, declinante em qualquier aspecto que se considere”.
Essa Argentina “vital” eu estenderia até os anos 70 quando a conheci, mais exatamente em 1973. O Brasil vivia a paz dos cemitérios do governo Médici quando eu tentava chegar ao Chile para cobrir o golpe que depôs o governo constitucional de Salvador Allende.
Voltava para o hotel depois de um dia de tentativas inúteis (Pinochet fechara o Chile por terra, mar e ar, para o banho de sangue, que eu ainda conseguiria testemunhar quando finalmente aportei em Santiago). Caminhava tarde da noite pela Florida, o calçadão do centro de Buenos Aires, quando cruzei com um grupo de estudantes que protestava contra o golpe no vizinho, ao cântico “Allende no se suicidó/yankis lo mataron/a la puta que los parió”.
Costurei-me ao muro, certo de que logo a polícia baixaria e mataria a pau a estudantada desbocada. Nada. Deram voltas e voltas no quarteirão da “vital” Buenos Aires sem repressão.
A repressão só viria mesmo três depois, com o golpe de1976.
Foi a partir dele – e não, a meu juízo, dos anos 80 – que a Argentina começou a descer o tobogã.
Mas o fundo do poço foi alcançado de fato em 1982, quando a Junta Militar decidiu invadir as ilhas Malvinas, para desviar a atenção dos problemas internos – e a Argentina foi junto com ela.
Eu estava na América Central quando se deu a invasão. Enquanto tentava achar o meio mais rápido de voltar ao posto, telefonei para minha mulher, que me contou que o general Leopoldo Fortunato Galtieri, o presidente de turno, estava sendo aplaudido na rua.
Achei que ela não estava entendendo nada. Mas foi só chegar a Buenos Aires para descobrir que era verdade, sim.
Foi verdade até a derrota nas ilhas, quando uma multidão convocada à praça de Mayo explodiu em gritos de “Galtieri, borracho/mataste a los muchachos”.
Só mesmo um bêbado ou um louco para mandar jovens soldados despreparados enfrentar o frio do Atlântico Sul e as tropas do Reino Unido, país membro da Otan, a aliança militar ocidental.
A ditadura acabaria apenas em 1983, o que significa que já são 30 anos consecutivos de vida democrática. Não dá, portanto, para entender a melancolia do dono do restaurante ou do historiador Luis Alberto Romero, a menos que se concorde com um best-seller já meio antigo (2002), de Marcos Aguinis, cujo título diz tudo: “O atroz encanto de ser argentino”.
É uma viagem à alma dos argentinos, cujos defeitos – supostos ou reais – fizeram Pasquini Durán, naquele jantar madrilenho de 36 anos atrás, supor que uma maldição se abatera sobre o país.
É verdade que foram 30 anos tumultuados, dois presidentes forçados a renunciar antes do tempo, surtos de hiperinflação, um “corralito” (a retenção dos depósitos). Mas foram também tempos de um acerto de contas com o passado repressivo muito mais abrangente do que o do Brasil por exemplo.
Os anos mais recentes foram igualmente de crescimento superior ao do Brasil. De fato, entre 2002 e 2011, a Argentina teve um crescimento real de 94%, inigualável entre as economias ocidentais e que, segundo o Fundo Monetário Internacional, representou mais que o dobro do crescimento do Brasil. Alguma surpresa com as vitórias eleitorais sucessivas do casal Kirchner?
Ainda assim, o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina acaba de informar que um de cada cinco argentinos é pobre, taxa obscena para um país potencialmente tão rico.
O pior é que fantasmas de tempos passados ressurgiram. A inflação, por exemplo, é das maiores da América Latina, só inferior à da Venezuela. E, ainda por cima, o índice oficial é maquiado. Ninguém acredita nele.
O dólar está racionado. Nos meus tempos de correspondente, como recebia em pesos argentinos, vivia o martírio de percorrer as casas de câmbio, então concentradas na rua San Martín, procurando a melhor cotação para trocá-los por dólares para fugir da avassaladora inflação do período.
Esses tempos voltaram, desgraçadamente, com uma agravante: agora a troca de moeda é feita clandestinamente porque está proibida. É o “dólar blue” que vale pouco mais de 8 pesos quando, no oficial, o valor é de 5 pesos.
Voltou também o sinistro costume de tratar os adversários políticos como inimigos a abater.
Esses artificialismos com a inflação e com o câmbio sempre terminaram mal, na história do Brasil, da Argentina, da América Latina.
A crispação política, quando tão aguda, também não traz memórias agradáveis.
Ajudam a entender porque, hoje como ontem, uma frase é quase um dístico oficial do argentino: “Todo tiempo pasado fue mejor”.
Pudera: faz pouco, o latino-americanista Albert Fishlow lembrou que, em 1913, a renda per capita da Argentina estava entre as cinco mais elevadas do mundo. Retrocedeu, no ranking mais favorável, para além do posto 40, “o que torna seguro dizer que nenhuma outra economia moderna com governo democrático fez tão pouco de tanto”.
Triste.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno “Mundo”. É autor, entre outras obras, de “Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo” e “O Que é Jornalismo”. Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno “Mundo” e às sextas no site.
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