As dívidas soberanas e a fábula argentina

O caso da dívida argentina ameaça transformar-se numa fábula de terror para as finanças globais. Num mundo sacudido pelos excessos do sector financeiro, a justiça dos Estados Unidos, a maior praça financeira do mundo, decidiu penalizar a Argentina e por em cheque o futuro das reestruturações da dívida soberana.

É que, o da Argentina, é um perigoso testemunho. Depois de conseguir uma aceitação de 93% dos seus credores na renegociação de uma dívida cuja crise remonta há mais de 13 anos, o poder judicial de Nova Iorque decidiu interromper o circuito de pagamentos da dívida reestruturada e pretende forçar o país a realizar acções que atentam contra as pautas básicas de qualquer reestruturação de dívida.

As consequências no futuro desta sentença são mais que evidentes: que credor aceitará renegociar uma dívida soberana se a justiça da principal praça financeira do mundo decide com as suas sentenças castigar aos que aceitam de boa fé uma reestruturação?

Longe da resignação, a Argentina decidiu desenvolver uma campanha internacional para informar sobre os perigos desta sentença e a necessidade de uma melhor regulação financeira global. O caminho é árduo e difícil, o entusiasmo reformista que invadiu os líderes mundiais com o estrondo da última grande crise de 2008, foi rapidamente abandonado pelas principais potências perante a parcial estabilização da situação econômica.

No entanto, os apoios e avanços das últimas semanas semeiam alguma esperança de que o sofrimento argentino não seja em vão. No passado 9 de Setembro a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 68/304 que marca o inicio de um processo de construção de um novo marco jurídico multilateral que regule as reestruturações de dívida soberana.

A esmagadora maioria que acompanhou a proposta argentina (124 países, 70% do total) no seio de uma das instâncias mais democráticas com as que conta o sistema de representação multilateral esteve acompanhada ainda por uma longa lista de apoios de líderes de opinião e especialistas.

O Papa Francisco expressou o seu apoio ao projecto ao convidar a Presidente argentina a visitá-lo a caminho da Assembléia das Nações Unidas onde se apresentaria a Resolução. Nesse encontro recordou a “Exortação Apostólica” na que o Papa menciona a necessidade de uma mudança de atitude enérgica dos dirigentes políticos para conseguir uma reforma financeira que não ignore a ética do ser humano.

Na conferência de imprensa posterior à aprovação da Resolução, o presidente do Grupo de 77 + China, Sacha Sergio Llorenti Soliz, destacou que “o caso da Argentina abriu os olhos do mundo”. A votação na Assembléia demonstra que o caso não passou despercebido. Enquanto os chamados Países Emergentes assumiram como própria a iniciativa, as potências financeiras (EUA, Grã Bretanha, Japão e Alemanha) recusaram-na no intuito de manter o debate circunscrito a espaços de decisão mais restritos. Mais chamativo resulta, contudo, o accionar de um grupo de países que enfrentam hoje elevados níveis de endívidamento e que decidiram abster-se na votação. Neste grupo encontram-se entre outros, Portugal, Espanha, Itália e Grécia.

O acompanhamento à posição da Argentina não aponta para uma solução à situação judicial do país, mas sim para estabelecer um marco que permita reiniciar a agenda de discussão multilateral de uma nova e mais efectiva regulação financeira global. Construir um sistema de regras internacionais capaz de resolver de maneira justa os problemas da nossa sociedade e evitar que o caso argentino se transforme numa fábula de terror, é um desafio de todos.

Embaixador da República Argentina na República Portuguesa

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