Argentina revive a crise

FABIAN GREDILLAS/AFP/JC

Após decretar moratória em 2001 e viver um momento conturbado em sua economia, a Argentina parecia se encaminhar para a plena recuperação. Alguns sinais, como o crescimento significativo do Produto Interno Bruto (PIB) desde então e o desemprego em queda, apontavam para esse caminho. No entanto, mantendo uma dose de drama típico da nação vizinha, o cenário atual não é dos melhores. A inflação saiu de controle, a confiança externa ficou abalada e, para piorar o quadro, a expansão constante dos anos anteriores começa a ser colocada em xeque.

O PIB argentino decolou, depois de cair 15,5%, de 1999 a 2002, durante a crise. De 2003 a 2011, o crescimento acumulado chega a 79,5%, conforme dados do Banco Mundial. O ápice aconteceu em 2010, com incremento em velocidade chinesa de 9,1%. Porém, a projeção é de que 2012 chegue a 2,6%, na ótica do banco, e há analistas argentinos que preveem um índice ainda menor. Economista sênior da consultoria Econviews, sediada em Buenos Aires, Eric Ritondale indica que a ascensão não deve passar de 1%.

E as perspectivas de futuro não são positivas. “A economia vai avançar a taxas menores, basicamente, porque o investimento atual em infraestrutura não sustenta um crescimento tão rápido quanto antes”, assinala Ritondale. Ele ainda constata que a aplicação de capital estrangeiro em solo argentino tem diminuído, chegando a 1% do PIB após a expropriação da petroleira YPF, até então controlada pela espanhola Repsol. “É preocupante, mas é preciso lembrar que todo o desenvolvimento dos últimos anos foi financiado pelo mercado interno”, salienta.

Mercado interno que ganhou força com políticas voltadas à distribuição de renda e à redução do número de desocupados. Conforme o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), o IBGE castelhano, de 2002 a 2012, a taxa de desemprego caiu de 17,8% a 6,9%. Contudo, desde 2007, quando passou por uma troca de comando orientada pelo governo federal, a instituição tem suas estatísticas questionadas. A principal queixa se refere ao índice oficial de inflação, muito abaixo dos divulgados por consultorias privadas.

Além disso, o especialista da Econviews recorda que a Argentina carece de investimentos em áreas estratégicas, como a energética. A mineração é um dos poucos segmentos com projetos em andamento, incluindo um aporte da Vale de US$ 5,9 bilhões em minas de potássio na província de Mendoza. No momento, a companhia brasileira paralisou os trabalhos, aguardando maiores benefícios fiscais e cambiais por parte do governo.

Câmbio, aliás, que se configurou um dos principais alvos da presidente Cristina Kirchner. A chefe do Executivo tem imposto restrições para a compra de moedas estrangeiras. Como efeito, o mercado paralelo, com seu dólar “azul”, ganhou força. Hoje, a cotação estabelecida pelos doleiros é quase 50% superior frente à da moeda obtida legalmente.

Por ter uma economia tradicionalmente dolarizada, a Argentina está vendo uma série de ramos sofrerem com o chamado “cepo cambiário” (prisão cambial, numa tradução livre). “O mercado imobiliário e a indústria da construção foram muito afetados, pois todas as transações eram feitas em dólar. Ademais, a produção agroindustrial exporta pelo câmbio oficial, mas o custo dos insumos sobe ao nível do dólar paralelo”, explica Ernesto O’Connor, diretor do Programa de Análise de Conjuntura da Faculdade de Economia da Universidade Católica Argentina (UCA).

De acordo com O’Connor, a economia argentina está vivendo seu terceiro ciclo desde a chegada dos Kirchner ao poder. De 2003 a 2006, sob o mandato de Néstor, havia controle da inflação e superávits gêmeos (fiscal e comercial). Entre 2007 e 2010, já com Cristina, os superávits diminuíram e os preços começaram a subir. Como consequência, na atual etapa, iniciada em 2011, há déficit fiscal e uma intervenção maior do Estado para ajustar as contas.

Para o professor da UCA, um dos maiores problemas atuais do país é a inflação. “Mas o governo não reconhece que haja esse problema”, critica. A taxa oficial, medida pelo Indec, finalizou 2012 em 10,8%, contra 25,8% do índice calculado por analistas de mercado.

Apesar de não reconhecer a diferença, Cristina fechou acordo com as maiores cadeias de supermercados para congelar os preços até abril. “É uma medida que não vai levar a nada, como já vimos no Brasil nos anos 1980. A cadeia de comercialização, do produtor ao consumidor, é muito ampla, e as etapas anteriores não vão conseguir reproduzir o preço do congelamento”, aposta Alfredo Meneghetti Neto, professor de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs).

Pesquisa mostra que população está menos confiante em relação à economia

Pesquisa realizada pela Universidade Católica Argentina (UCA) e a TNS Gallup mostra que os argentinos terminaram 2012 mais pessimistas em relação à situação da economia do país. Na amostra, realizada em dezembro do ano passado, 22% dos entrevistados definem o quadro atual como bom. Por outro lado, 36% consideram ruim. Em 2011, 30% classificavam o cenário de momento como bom, e 24%, ruim.

O economista e professor da Faculdade Decision-Fundação Getulio Vargas (FGV) Antônio Carlos Fraquelli acredita que a gestão de Cristina Kirchner vem se isolando, tanto nas relações internas quanto nas externas. “Ao invés de avançar na criação de uma agenda econômica, ela está em conflito com o grupo Clarín, o Judiciário, os produtores rurais, a indústria e até os sindicatos, que já foram aliados dela”, menciona. Fraquelli considera a situação da Argentina muito preocupante e constata a existência de uma crise de confiança internacional. “A expropriação da YPF repercutiu muito mal. Quem vai investir lá depois disso?”, indaga.

Com outro ponto de vista, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Paulo Vizentini descarta um isolamento de Cristina do resto do mundo. “Ela está ficando isolada de quem? Com os chineses, por exemplo, a Argentina tem feito bons negócios”, ressalta. Para ele, os hermanos vivem um momento de vulnerabilidade econômica e impõem ações defensivas a fim de evitar que a crise de 2001 se repita. “As autoridades previram uma evasão de capitais do país e adotaram uma série de medidas impopulares, mas que não afetam a maior parte da população argentina”, complementa.

Moratória segue gerando problemas

Mesmo com 93% de sua dívida reestruturada, a Argentina segue tendo dores de cabeça com a moratória decretada no passado. Os credores que não aceitaram aderir às renegociações feitas em 2005 e 2010 pelo governo federal - que preveem pagamento menor que o do valor devido e um parcelamento mais flexível -, seguem pleiteando o montante na íntegra. O diretor do Programa de Análise de Conjuntura da Universidade Católica Argentina (UCA), Ernesto O’Connor, diz que os detentores dos bônus argentinos não readequados exigem, ao todo, cerca de US$ 30 bilhões.

No final do ano passado, um juiz federal norte-americano havia decidido a favor de dois fundos de investimentos dos Estados Unidos que solicitam o pagamento imediato de US$ 1,3 bilhão referente aos bônus que detinham da dívida argentina. Fundos estes que a presidente Cristina Kirchner apelidou de “abutres”, por agirem igual à ave de rapina. A Argentina recorreu ao tribunal federal de apelações e, nesta quarta-feira, todas as partes envolvidas terão a chance de expor seus pontos de vista em uma audiência. A partir daí, será tomada uma decisão. 

“Há esperança de que a decisão não seja a favor dos ‘fundos abutres’”, afirma O’Connor. Caso perca a ação, a Argentina até teria como pagar a pendência. O problema é que, se fizer isso, o país pode colocar por água abaixo todo o processo de renegociação de débitos feito anteriormente. E o governo já declarou que não fará negócio nos moldes exigidos pelos “fundos abutres”. Enquanto isso, algumas agências de classificação de risco tem rebaixado a nota da Argentina. A Fitch, por exemplo, alega uma situação de default (calote) provável.

Devido à atual conjuntura da economia argentina, o Fundo Monetário Internacional (FMI) lançou uma moção de censura ao país por seus índices pouco transparentes, especialmente no que se refere ao cálculo da inflação e do PIB. O organismo solicitou correções até setembro. O ministro da Economia, Hernán Lorenzino, até sinalizou com a criação de um novo indicador de preços.

Usuária frequente de redes sociais, a presidente respondeu à carraspana do FMI por meio de seu perfil no Facebook. “A Argentina era uma aluna exemplar do FMI nos anos 1990, que seguia cada uma de suas receitas e, quando quebrou, o fundo soltou a mão (dos argentinos)”, criticou, lembrando os governos neoliberais da época. A chefe do Executivo ainda questionou a omissão do órgão diante da crise financeira global iniciada em 2008: “Onde o FMI estava?”, ironizou.

Barreiras comerciais com o Brasil podem ser diminuídas neste ano

Os recentes números positivos obtidos no comércio exterior podem diminuir as barreiras comerciais para a importação de produtos brasileiros. Ao menos é o que sinaliza o próprio governo argentino. Em janeiro, através de seu diário oficial, o país vizinho implementou uma resolução revogando as licenças não automáticas para uma série de itens, entre eles calçados, têxteis e manufaturados. A decisão veio dias depois de a presidente Cristina Kirchner anunciar um superávit de US$ 12,6 bilhões na balança comercial em 2012.

Na temporada passada, os hermanos exportaram US$ 81,22 bilhões, uma queda de 2,7% frente a 2011. Entretanto, as importações caíram em ritmo maior (7,3%), fechando em US$ 68,56 bilhões. E as relações com o Brasil acabaram contribuindo significativamente para o resultado. Os brasileiros continuam ganhando o jogo dos argentinos, mas não de goleada, como no passado. De acordo com as estatísticas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o superávit verde e amarelo caiu de US$ 5,8 bilhões para US$ 1,5 bilhão.

Enquanto as vendas brasileiras para aquela nação caíram de US$ 22,7 bilhões a US$ 17,9 bilhões, entre 2011 e 2012, as importações decresceram de US$ 16,9 bilhões para US$ 16,4 bilhões. Mesmo assim, há quem veja perspectivas mais positivas de negócios entre Argentina e Brasil em 2013. “A safra agrícola argentina neste ano será 20% maior, por causa das condições climáticas melhores. Isso vai aumentar as exportações e pode permitir algumas importações a mais”, projeta Eric Ritondale, economista sênior da consultoria Econviews.

Por outro lado, a coordenadora da área de comércio exterior do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, Lia Valls, é pouco otimista. “Não vejo, no curto prazo, tendência de alguma mudança substancial nas relações, até porque a situação econômica da Argentina continua difícil”, analisa. A economista acredita que o Brasil continuará contemporizando e não irá bater de frente com o governo de Cristina, até pelo fato de a Argentina continuar tendo grande relevância na pauta exportadora.

O Rio Grande do Sul tem sido um dos principais afetados pelas barreiras. As exportações gaúchas para solo argentino, o segundo destino mais frequente dos embarques, caíram de US$ 2,1 bilhões para US$ 1,5 bilhão entre 2009 e 2012, conforme dados do MDIC. No mesmo período, as importações subiram de US$ 2,8 bilhões para US$ 4,1 bilhões. Apenas entre 2011 e o ano passado, houve grande retração nas transações de máquinas agrícolas (-49%), calçados (-32%), móveis (-36%), borracha (-33%) e ferramentas e itens de cutelaria (-50%).

Entre os empresários gaúchos, o sinal de trégua dos argentinos é encarado com ressalvas. “Em um primeiro momento, a queda da licença não automática sinaliza tempos melhores, mas ainda é cedo para avaliarmos os efeitos. A história recente nos mostra algumas surpresas, até desagradáveis, vindas da Argentina”, aborda Cézar Müller, coordenador do Conselho de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado (Fiergs). Segundo Müller, apesar da troca de procedimento, o controle das importações continua na mão do governo vizinho. Isso porque ainda é exigida a Declaração Juramentada Antecipada de Importação (DJAI).

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