Numa assembleia considerada histórica, os jornalistas do jornal argentino La Nación repudiaram o editorial publicado no dia 23 de novembro que, sob o título “Chega de vingança”, defendeu uma revisão das penas dos responsáveis pela repressão sangrenta da ditadura militar de 1976-83.
O texto esbraveja contra o “vergonhoso” padecimento dos condenados, processados e inclusive suspeitos de terem cometido delitos durante os anos da repressão subversiva e que se encontram em prisões apesar da sua anciania”.
Antes, compara as organizações de esquerda que fizeram a luta armada contra a ditadura com os atentados em Paris da semana passada: “a esquerda ideologicamente comprometida com os grupos terroristas que assassinaram aqui com armas, bombas (…) que em nada se diferenciam com os que provocaram sexta 13 em Paris a comoção que abalou o mundo”.
Repúdio dos jornalistas
Logo a seguir à publicação, pelo twitter, os protestos dos jornalistas multiplicaram-se:
“Trabalho em La Nación, mas não concordo com o editorial de hoje. Não sou o único jornalista de LN que pensa assim”.
“Trabalho para o jornal La Nación. O editorial de hoje é grave sob qualquer perspetiva. Um tiro contra a democracia e o país”.
“Repudio o editorial de La Nación de hoje. Nem esquecimento, nem perdão. Não ajuda nem um pouco ao governo que apela ao entendimento. Triste”.
“O editorial representa a empresa, não os seus trabalhadores”.
Outro twit observava:
“Há algo de bom no editorial de hoje do La Nación: gerou uma onda de repúdio sem precedentes entre os trabalhadores do jornal”.
“É um orgulho ver que tantos camaradas de trabalho repudiam o editorial”.
“Eu repudio o editorial”
Na mesma tarde, os jornalistas fizeram uma “assembleia histórica” e posaram para uma foto na redação, em que exibiam uma faixa: “Eu repudio o editorial”.
Pouco depois, o jornal publicou no seu site um texto sobre a repercussão negativa do episódio. No final, reproduzia a nota dos jornalistas, mas esta foi suprimida pouco depois, sem qualquer justificativa. A nota, porém, pode ser lida noutro site, e é assinada pelas “comissões internas de imprensa e gráficos”:
“Nós, que trabalhamos no jornal La Nación, nas revistas editadas pela empresa, nas versões online de todos os seus produtos jornalísticos, entendemos que a vida democrática implica o convívio de distintas ideias, projetos e identidades políticas. Entre estas paredes, convivem trabalhadores que expressam essa diversidade e, a partir das nossas diferenças, construímos um sentido comum. A partir dessa diversidade, repudiamos a lógica que o editorial de hoje pretende construir, que em nada nos representa, ao igualar as vítimas do terrorismo de Estado e as ações na Justiça em busca de reparação nos casos de delitos de lesa-humanidade às punições a presos comuns e a ‘uma cultura de vingança’”.
Para não esquecer
O número atual de “desaparecidos” da ditadura militar da Argentina de 1976-83 é de 8.961 pessoas, mas pode ter chegado a 22 mil, segundo um relatório dos serviços de informações chilenas de 1978, ou a 30 mil, segundo as Mães da Praça de Maio. A maioria das vítimas eram jovens menores de 35 anos, de profissão operário ou estudante, e que foram detidos nas suas casas à noite.
De acordo com o balanço do Centro de Estudos Legais e Sociais, 2051 militares e torcionários do regime foram processadas por crimes de Lesa Humanidade. Até agora, 592 foram condenados e 53 absolvidos. Há 1046 presos, dos quais cerca de metade em prisão domiciliar. Outros 606 estão a ser processados em liberdade.
O primeiro presidente da Junta Militar, Jorge Videla, foi condenado em dezembro de 2010 à prisão perpétua. Morreu na prisão em 2013.
Este texto baseia-se em parte no artigo “Jornalistas argentinos dão exemplo de dignidade” da jornalista e professora de jornalismo na Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzsohn.
Open all references in tabs: [1 - 3]