Argentina descobre cartas de Freud, e este blogueiro revive …

Foram momentos muito especiais da minha carreira como jornalista e da minha vida aqueles em que a Folha de S. Paulo, jornal onde eu trabalhei durante 11 anos, deu-me a oportunidade de morar em Buenos Aires, para ser seu correspondente. Hoje, Zero Hora conta com o conhecimento que acumulei e que mantenho sempre vivo sobre a Argentina, um país em relação ao qual tenho carinho muito especial. Na quinta-feira, na entrevista que fiz com Daniel Filmus, ele percebeu a forma como falamos sobre a história e a política argentina e o quanto eu, um jornalista brasileiro, preocupo-me em acompanhar a realidade do país vizinho.

Pois bem. Eu morava na esquina da Avenida Santa Fé com a “calle” Araoz naquele período entre 1997 e 1998, num edifício de onde a linha D do metrô me deixava no microcentro – sempre preferi percorrer a pé a Santa Fé, mas havia o “subte” facilitador. Para o outro lado, era o norte da capital argentina. Eu assinava cinco jornais e os lia cedo no Jardim Botânico.

Foi um momento muito especial da vida deste blogueiro.

Na foto, eu havia voltado de uma entrevista na Casa Rosada e assistia ao noticiário na Todo Noticias. O flagrante é da minha mulher, a Dione, que ia quinzenalmente ficar comigo e passava férias lá.

A gente gostava de almoçar no restaurante Sigi (que vem de Sigmund Freud), com suas massas, a poucas quadras do prédio. Tudo era uma grande curtição mesclada ao trabalho interessante – se não me engano, o Sigi ficava na rua Paraguai, paralela à Santa Fé.

O amigo Ariel Palacios, que era o repórter do concorrente O Estado de S. Paulo, brincava sobre a minha volúpia em entender tudo, conhecer tudo, caminhar por tudo. Realmente, aproveitei cada instante daquela experiência.

Recordo-me de tudo isso porque o bairro onde eu vivia é o Palermo, e lá está a maior concentração de psiquiatras de Buenos Aires – dá para se dizer que é a maior concentração da América Latina, no mínimo.

Agora, pesquisadores descobriram três cartas escritas à mão pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud, expostas desde sexta-feira. As três cartas, que datam de 1911, 1916 e 1917, foram descobertas no início deste ano, mas a confirmação de autenticidade levou vários meses. Finalmente, elas estarão expostas na mostra “Construções da psicanálise na Argentina”, organizada pela Universidade de Rosario (300 km ao norte de Buenos Aires). A descoberta ocorreu quando os pesquisadores faziam um trabalho de digitalização de arquivos pessoais de um dos pioneiros da psicanálise na Argentina, Angel Garma.

- A gente estava fazendo um trabalho rápido, porque havia 3 mil documentos e tínhamos que devolvê-los, quando disse para minha colega: essa aqui está assinada por Freud, com o endereço de Berggassen 19, em alemão e acho que é uma original – contou, para a agência de notícias France Presse (AFP), Guillermo Ferragutti, que trabalha no Centro de Documentação da Unidade de Investigações Sócio-históricas Regionais de Rosario.

Ainda surpreso com o alcance da descoberta, Ferragutti lembrou o momento em que viram a famosa assinatura:

- Todos levantamos a cabeça e nos demos conta de que estávamos em outra escala de descoberta. Quase não nos demos conta logo no início, mas agora vemos que impacto real da nossa descoberta. 

Embora a descoberta das cartas só tenha se tornado pública esta semana, foram necessários vários meses para constatar a veracidade de sua origem, assim como decifrar seu conteúdo, escrito numa antiga grafia alemã chamada Sütterlin – que lembra as fontes góticas. 

Ferragutti explicou que o Sütterlin era um sistema de caligrafia germânico instituído na Prússia em 1911. Em seguida, a escrita se popularizou na Alemanha, onde foi utilizada até 1941, quando o partido nazista baniu todas as fontes góticas. 

- Foi adotada como fonte oficial para as comunicações do governo e da burocracia estatal, assim como nas escolas primárias, onde era obrigatória – disse o pesquisador à France Presse. 

O percurso para conseguir decifrar o que diziam as três cartas de Freud foi longo: viajaram de Rosario para Viena, onde foram traduzidas e confirmadas como originais.

Ferragutti também confirmou que, embora tenham sido encontradas no arquivo de Garma, as cartas não se dirigiam a ele. 

- Mas ainda não sabemos porque elas estavam com Garma, e uma de nossas hipóteses é de que foram um presente dado por Theodore Reik, que foi analista de Garma e discípulo de Freud – contou.

Outra tese é de que teriam chegado às mãos de Garma por intermédio de Marie Bonaparte, amiga do argentino e encarregada de compilar a correspondência de Freud.

A terceira opção sustenta que Garma teria comprado as missivas de algum circulo de colecionadores. 

Em Buenos Aires, é difícil encontrar entre os moradores de classe média alguém que nunca tenha feito análise – e muitos portenhos batem recordes de anos em tratamento. 

Na Argentina há mais de 50 mil psicólogos de diferentes correntes, o que equivale a uma média de um profissional para cada 690 habitantes, três vezes mais do que nos Estados Unidos, segundo a Associação Psicanalítica Argentina (APA). Mas em Buenos Aires o número é ainda mais contundente: há um em cada 120 portenhos.

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