Restaurar o latifúndio mediático: essa parece ser uma das prioridades da política de choque que a nova administração conservadora aplicará na Argentina nos próximos 100 dias, além de outras medidas regressivas em termos políticos, económicos e judiciários.
Um dos primeiros anúncios do governo, inclusive antes da posse de Maurício Macri – ocorrida a 10 de dezembro – foi acabar com o programa 678, transmitido pelo canal de televisão estatal TV Pública no horário principal da noite competindo com os principais noticiários privados.
Um dia depois de vencer as eleições, Macri adiantou que “o programa não vai continuar, nem 678 nem 876”, fazendo um trocadilho com duvidoso sentido de humor.
Com uma audiência respeitável, mas sem chegar a ser massivo, o programa 678 desmascarou a informação dos grandes meios de comunicação social, apelando a um estilo de denúncia sem concessões.
“Temos posição, não vamos enganar o telespectador com o mito da objetividade jornalística” disse um dos comentadores que criticava todos os dias a agenda mediática e política.
Os comentadores do 678 permitiam-se ousadias que nunca antes se tinham visto – pelo menos não com tanta coragem – na televisão aberta. Atreveram-se a desmontar peça por peça as notícias publicadas pelos grupos económicos nos jornais e canais de televisão privados, e demonstrar como esses meios recebiam compensações pelo que diziam.
Neste programa, produziram-se reportagens especiais sobre a relação do jornal Clarín com a ditadura militar e informações sobre os principais executivos desse oligopólio, algo que ninguém tinha ainda desafiado com tanta obejtividade e clareza.
Houve programas que continham informações sobre as reuniões da Embaixada dos Estados Unidos com dirigentes opositores e também sobre os pactos estabelecidos entre os fundos abutres – que promovem uma guerra financeira contra a Argentina – e os seus lobistas na Argentina, para causar instabilidade económica.
Para fazer uma metáfora com o Brasil, é como se um programa se ocupasse diariamente de desconstruir as inverdades apresentadas por William Bonner no Jornal Nacional, com uma equipa de produção muito bem organizada, transmitindo em horário nobre e com reportagens sobre temas internacionais, como o emitido este ano sobre a cumplicidade entre o semanário brasileiro Veja e o diário Clarín para semear e amplificar notícias falsas a respeito das relações entre a Argentina, a Venezuela e o Irão, a partir de fontes não reveladas, que possivelmente seriam inventadas.
Direto e mordaz, o 678 pecou às vezes como panfleto “kirchnerista”, e em certas ocasiões exagerou no tom didático, mas nunca foi complacente.
Mercado versus direito de informação
Macri assumiu o seu mandato prometendo inaugurar uma nova era política, imaginando que poderá enterrar as conquistas dos doze anos de governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015).
Com o propósito de erradicar o “populismo estatista”, ele designou ex-CEOs de corporações privadas para cargos vitais, como a presidência da petrolífera YPF, que foi nacionalizada na década passada.
A sua ambição é ser um símbolo do fim de uma época na América do Sul. Para isso, conta com a aprovação das empresas de comunicação social da Argentina, do Brasil e de toda a região, como ficou demonstrado na cobertura elogiosa que se viu na sua visita à sede da FIESP, em São Paulo, onde foi recebido como um redentor.
Macri é um homem perspicaz, que sabe conduzir-se entre os meios de comunicação, e que aprendeu relacionar-se com as emoções populares enquanto presidiu aos destinos do clube desportivo Boca Juniors.
Apesar de propor a reconciliação nacional e ter uma imagem de empresário zen, Macri não parece estar à vontade com o jornalismo intransigente, como o do 678 ou do diário Página/12, que publicou investigações sobre os seus acordos com ex-agentes da ditadura militar.
Apesar de propor a reconciliação nacional e ter uma imagem de empresário zen, Macri não parece estar à vontade com o jornalismo intransigente, como o do 678 ou do diário Página/12, que publicou investigações sobre os seus acordos com ex-agentes da ditadura militar.
O fim do programa 678 é um sinal duro sobre a posição do novo governo contra o modelo de jornalismo alheio às pressões dos grandes agentes económicos locais e multinacionais.
Tomemos um exemplo imediato: imagine-se a cobertura implacável do programa 678 aos iminentes acordos que serão assinados entre a nova administração e os fundos abutres, que exigem taxas de juros exorbitantes.
E não apenas isso. Se o 678 não fosse tirado do ar, certamente seriam produzidas reportagens sobre a a complacência dos grandes meios de comunicação com o eventual acordo com os barões do mercado financeiro global.
Vingança
O fim do programa 678, iniciado em 2009, é somente a ponta do iceberg do que será a desconstrução da estrutura de meios públicos, fortalecida a partir da entrada em vigor da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual – mais conhecida como Ley de Medios –, promulgada precisamente em outubro de 2009.
A política de reprivatização da comunicação social do governo Macri ficará completa com o arquivamento da Ley de Medios, que exige o desmembramento do sistema tentacular de propriedades do Grupo Clarín.
Paralelamente, eufóricos com a restauração conservadora, grupos de hackers lançaram ataques contra a imprensa não alinhada com as ideias do novo Presidente, a começar pelo diário Página/12, cuja edição eletrónica ficou fora do ar durante dias.
Os cães de guarda do poder iniciaram uma guerra contra o jornalismo que informa.
Os cães de guarda do poder iniciaram uma guerra contra o jornalismo que informa.
É ingénuo supor que esses ataques não estão relacionados com clima de revanche alimentado pela ultradireita argentina.
Desde sua fundação, em 1987, o diário Página/12 teve como linha editorial a defesa dos direitos humanos e, com ela, a firme opoisção contra os genocidas que atuaram durante a ditadura, que provocou a morte ou o desaparecimento 30 mil pessoas.
Entre os redatores do nosso jornal estão os jornalistas de investigação que revelaram as razões do genocídio do Estado, cujos culpados foram processados e presos na última década.
A poucos dias da vitória de Mauricio Macri –que não se pode ser acusado de cumplicidade com estas intimidações –, começaram a notar-se sinais de vingança: houve atos intimidatórios contra os defensores dos direitos humanos, e o conservador diário La Nación, primo-irmão do brasileiro Estado de São Paulo e conhecido pela sua linha conservadora, publicou um editorial exigindo a libertação dos genocidas. Um texto que mereceu o repúdio dos próprios jornalistas desse matutino, num facto sem precedentes na história argentina.
Darío Pignotti é correspondente e doutor em comunicação pela USP
Artigo publicado no Carta Maior Tradução: Victor Farinelli
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