América Latina Argentina adota postura de ignorar perigos do calote

Em Buenos Aires, a manhã após o fracasso na negociação da dívida parece um dia de inverno como qualquer outro. O Rio da Prata empurra densas massas de névoa sobre a cidade. Trens e ônibus estão lotados de gente a caminho do trabalho, todos os bancos estão abertos, os caixas eletrônicos cospem cédulas de pesos, sem problema. E a mídia dá à recente morte do presidente da Federação Argentina de Futebol pelo menos tanto espaço quanto ao fracasso dos diálogos com os credores em Nova York.

Para um país que acaba ser declarado insolvente, o clima é espantosamente relaxado. Também durante as semanas de conversas nos Estados Unidos não havia sinal de pânico. Mesmo que, pouco antes do desfecho, ainda tenha havido um vislumbre de esperança, poucos argentinos se surpreenderam de verdade quando, com seu jeito despachado e irreverente, o ministro da Economia Axel Kicillof anunciou o fracasso das negociações na noite de quarta-feira (30/07).

O ministro, que não vê calote no caso, também declarou que a vida na Argentina continuará normalmente. Mas a coisa não é tão simples assim: a nova inadimplência não vai precipitar o país na pobreza da noite para o dia, como ocorreu em 2001. Mas a já combalida economia argentina estará sob pressão ainda maior: empresários, consumidores e investidores vão se retrair por um tempo.

Consequências duras

Os mercados financeiros internacionais de que, nos últimos meses, a Argentina vinha se aproximando passo a passo, encontram-se, subitamente, de novo a quilômetros de distância. E isso terá consequências pesadas, aposta Luis Palma Cané, da firma de consultoria econômica Fimades.


Ministro da Economia Axel Kicillof: estilo irreverente

"As províncias vão ter problemas em financiar seus déficits orçamentários através de créditos. Isso obrigará o governo a colocar mais dinheiro em circulação. Além disso, grandes firmas nacionais, como o conglomerado petroleiro YPF, não vão conseguir mais verbas para investimentos", opina.

As pessoas físicas tampouco sabem como vai ser de agora em diante: se vão manter os seus empregos, o que acontece com os créditos, se a inflação segue crescendo; ou que fim terão seus créditos. "Tudo isso depende de onde você pôs o seu dinheiro", diz um argentino nas ruas de Buenos Aires. "Se está tudo no banco, eu ficaria bem apreensivo. Se está investido em imóveis ou coisa parecida, eu primeiro deixava lá e aguardava. Isso vai acabar passando."

Salvação por bancos privados

Nos últimos dias, os bancos do vizinho Uruguai registraram um número inusitadamente alto de transferências a partir da Argentina. Desde a bancarrota estatal de 2001, os bancos não são necessariamente as instituições em que os argentinos mais confiam. Porém, justamente agora, eles podem ser a salvação.

Até pouco antes do fim das negociações, na quarta-feira, diversos bancos privados estavam dispostos a comprar a curto prazo os títulos de dívida dos fundos de investimento americanos. A proposta fracassou no último segundo – supostamente devido à posição rígida do governo de Cristina Kirchner.

"Nunca esteve claro para nós se o governo realmente nos apoiava", queixa-se um banqueiro, que não quer ser identificado. "O ministro da Economia não entendeu que cada um dos arroubos dele nos custa 100 milhões de dólares."


Chefe de gabinete Jorge Capitanich: culpados são os outros

Contudo essa solução ainda poderia funcionar, opina Carlos Caicedo, especialista em América Latina da firma de análise de risco IHS. "Se o acordo der certo, o bloqueio dos pagamentos aos outros credores poderia ser suspenso, com a anuência do tribunal de Nova York. Deste modo, estaria superado o calote técnico da Argentina."

O governo ainda não se manifestou sobre a proposta. Em vez disso, o chefe de gabinete Jorge Capitanich atribuiu a culpa do fracasso das negociações aos fundos hedge e aos Estados Unidos. Além disso, Buenos Aires considera apelar à Corte Internacional de Haia e levar o caso às Nações Unidas. De resto, acrescenta, seria um "embuste" falar em calote.

Essa é a retórica usual do governo argentino, que já se conhece há meses. Também nesse ponto, o "dia seguinte" foi um dia como qualquer outro.

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