A pesada derrota do chavismo nas legislativas da Venezuela representa um novo golpe para a esquerda na América Latina, que também atravessa uma profunda crise na Argentina e no Brasil, com a crise económica a fazer tremer os governos no activo.
A vitória da oposição venezuelana do centro-direita pôs fim a 16 anos de hegemonia do chavismo (do nome do defunto Hugo Chávez), duas semanas depois do triunfo do liberal Mauricio Macri nas presidenciais argentinas, que sucedeu a 18 anos de governos Kirchner (primeiro Nestor, depois Cristina).
No início dos anos 2000, Chávez e Kirchner foram os iniciadores de um efeito dominó de vitórias da esquerda na região. Quinze anos depois, esta corrente está em risco até na primeira potência da América Latina, o Brasil, onde a Presidente Dilma Rousseff está ameaçada por um processo de destituição.
“Estamos a assistir ao desgaste do discurso à esquerda, que teve um efeito de transformação que acabou por produzir experiências regressivas”, considera a analista venezuelana Elsa Cardozo, da Universidade Simon Bolivar.
A chegada da esquerda ao poder em vários países latino-americanos foi acompanhada por uma ambiciosa política social que beneficiou as classes populares, numa região que tem das sociedades mais desiguais do planeta.
“Uma boa parte da popularidade destes governos assentou em subsídios e programas sociais que dependiam de recursos fiscais arrecadados graças aos preços elevados das matérias-primas”, principal produto de exportação da região, observa Carlos Malamud, especialista em América Latina do Instituto Real Elcano de Madrid. “Quando o preço destes recursos começou a descer em flecha, começaram as dificuldades”, acrescentou.
O factor comum a estes países é “a baixa do preço” sofrida pelas matérias-primas, resultado do abrandamento da procura por parte da China, acrescenta Gabriel Puricelli, politólogo da Universidade de Buenos Aires. O outro factor, o desgaste, é “lógico” para governos que ficam no poder muito tempo.
Na Venezuela, país que tem as maiores reservas petrolíferas do mundo, a queda do preço do crude fez afundar a economia, o que provocou graves penúrias de bens de consumo e uma inflação galopante.
Mas toda a região sofre com o fim da idade de ouro das matérias-primas: “A América Latina está a sair de um período de excessos e no fim da festa é preciso apresentar a factura”, diz Elsa Cardozo. A analista cita também, como outro exemplo de “desgaste” da esquerda latino-americana, a perda de terreno do Presidente boliviano Evo Morales nas recentes eleições regionais e a decisão do seu homólogo equatoriano Rafael Correa de renunciar a apresentar-se a um terceiro mandato em 2017.
Este fenómeno não é ainda generalizado: Morales foi reeleito confortavelmente em Outubro, e Rafael Correa, tal como Daniel Ortega na Nicarágua, continuam a gozar de bons níveis de popularidade. E a esquerda continua no poder no Chile, com Michelle Bachelet, e no Uruguai, com Tabaré Vazquez.
O secretário-geral da Unasur (União das nações sul-americanas), Ernest Samper, interrogado sobre os recentes resultados eleitorais na Argentina e na Venezuela, disse ter observado simples “viragens” democráticas. Evo Morales, por seu lado, apelou a uma “profunda reflexão” em defesa das “revoluções democráticas”, enquanto Daniel Ortega considerou necessário manter viva a herança de Hugo Chávez.
Para o politólogo guatemalteco Marcio Palacios, o enfraquecimento dos governos de esquerda na América Latina está ligado à corrupção e à sua propensão para repetir os esquemas da direita, como o de “privilegiar uma pequena minoria”. A consequência, diz, é “um regresso da direita, que tem no seu programa a extracção de minerais, de petróleo e de outros recursos naturais.”
Carlos Malamud é mais moderado: “Estamos numa nova etapa política na América Latina, mas isso não quer dizer uma viragem global à direita”. Em cada país que virou recentemente as costas à esquerda, Elsa Cardozo prevê uma “reconfiguração política” face à crise económica. “Talvez tenha chegado a altura de romper com os dogmatismos e de se concentrarem as atenções nas verdadeiras necessidades da América Latina”.