Dias antes da decisão sobre um provável calote da dívida de seu país, o economista Dante Sica, ex-secretário da Indústria da Argentina na gestão do presidente peronista Eduardo Duhalde, no início dos anos 2000, já trabalhava com o cenário de default. Para ele, o governo encontrou no evento uma forma de se fortalecer politicamente. Apesar disso, Sica, hoje diretor da abeceb.com, uma das maiores consultorias locais, diz que o país subestima o impacto do calote. “Cristina Kirchner nunca pensou que teria de voltar ao mercado internacional e que chegaria a 2016 sem resolver isso”, disse à DINHEIRO, na semana passada, em São Paulo, a serviço de sua consultoria. “O que aconteceu é que os problemas se anteciparam.”
DINHEIRO – O governo argentino diz que não deu o calote, porque tenta pagar a dívida, mas os negociadores já falam em calote. Houve calote ou não?
DANTE SICA – O problema não é se quero pagar aos fundos abutres, essa discussão já está aí. A questão, agora, é: queremos desobedecer a uma sentença judicial? Se não obedecermos, isso também gera problemas no futuro. O argumento técnico é: “quero pagar, mas a cláusula Rufo (que exige condições iguais a todos os credores) me impede”. O argumento político é “não quero pagar os fundos abutres e não vou entrar em calote porque depositei”. Na verdade, o que vai determinar se entrou em default ou não é o mercado.
DINHEIRO – Pela reação dos mercados no dia seguinte, houve default?
SICA – Sim. A bolsa caiu, os bônus caíram, o dólar disparou. Estamos nas primeiras etapas de um default. Entramos num cenário confuso de questões legais. Há alguns bancos que têm seguro contra o calote de dívida. Essa questão precisa ficar mais clara ainda.
DINHEIRO – Como fica a situação da Argentina?
SICA – O governo vai utilizar politicamente o calote. Vai tratar de sustentar que há uma confrontação da Argentina contra os poderes internacionais. Isso pode, em parte, até melhorar a imagem do governo, mas uma grande parcela da população tem medo de perder o trabalho e o que quer é estabilidade, quer que esse tema se resolva. Independentemente do calote, a Argentina, que está em processo de recessão, terá uma queda do PIB, neste ano. Ao mesmo tempo, enfrenta problemas no setor externo, porque tem restrições de dólares, e a estratégia do governo nos últimos seis meses era ingressar novamente no mercado de capitais para conseguir que essas divisas entrassem. Isso tranquilizaria a situação, dando condições ao governo de terminar o mandato sem ser obrigado a efetuar grandes mudanças. Era uma questão de ganhar tempo.
DINHEIRO – O governo subestimou o tema dos holdouts (investidores que não aceitaram as condições da renegociação das dívidas)?
SICA – Foi um tema subestimado pelo governo por muitos anos. Pensavam que a questão da dívida estava resolvida. A surpresa é que acreditavam que a corte ficaria ao seu lado e não tinham um plano B, em caso contrário. O governo de Cristina nunca pensou que precisaria voltar ao mercado internacional. O que aconteceu é que os problemas se anteciparam e as condições econômicas e políticas se deterioram mais que o previsto.
DINHEIRO – Quais são as consequências econômicas desse processo?
SICA – Com o calote, vai aumentar a litigiosidade. Vai ser um terreno muito mais litigioso, de advogados, de representantes, o que vai gerar uma incerteza grandíssima, agravando os problemas que a Argentina já tinha. Não vai ser uma derrocada, como em 2001, mas vão aumentar as pressões pela desvalorização do peso, o governo vai querer compensar a falta de atividade com mais gasto e isso vai implicar mais emissão de moeda e mais inflação. Isso se traduz em mais recessão e perda de emprego. Se a economia já ia cair 1,5% quando esperávamos uma melhora no segundo semestre, com o calote será um ano perdido.
DINHEIRO – Qual será o resultado?
SICA – A economia deve cair 3%, com o calote. Não são 10%, como em 2001, mas serão agravados os efeitos negativos nos próximos seis meses. Vai derrubar as expectativas, frear o consumo... Não significa que se não entrasse em calote os problemas não iriam acontecer. O fato é que com calote eles serão mais acentuados. O que o governo faz é tentar ganhar tempo, esperando que entrem dólares, ao mesmo tempo que flexibiliza as restrições, de forma a chegar em 2016 mais tranquilamente, deixando o trabalho sujo para o próximo governo.
DINHEIRO – A retórica do governo atrapalhou as negociações?
SICA – Essas declarações de que tudo é um problema do sistema financeiro internacional, de fundos abutres contra a Argentina, servem para a política, para fortalecer a imagem da presidente, que vinha bastante abalada.
DINHEIRO – O governo fez o cálculo de que um calote poderia valer a pena?
SICA – O governo subestima o impacto do default. Pensa que não vai ser tão forte, que vai ser administrável.
DINHEIRO – Os investidores têm condições de diferenciar o Brasil da Argentina?
SICA – Um calote não contagia o Brasil. Hoje são países diferentes. O mercado sabe que o Brasil é muito diferente da Argentina.
DINHEIRO – O que o calote significa para o Brasil?
SICA – Seguramente haverá mais restrições para as importações brasileiras, porque o governo terá de contingenciar a saída de dólares para bancar as compras no Exterior.
DINHEIRO – O Brasil faz certo, então, em sair defendendo abertamente a Argentina...
SICA – Nenhum país se oporá à posição do governo argentino. A ação desses fundos abutres é moralmente questionável. É legal, mas moralmente questionável. Todo mundo sabe que há lacunas na regulação, que deveria haver regras que protegessem os países desse comportamento quase predatório. Há todo esse apoio declamatório, mas nos termos práticos não se faz nada. A Argentina pode ir ao Joseph Blatter e pedir um comunicado do tribunal arbitral da Fifa, que vai ter o mesmo peso que qualquer declaração da Cúpula do Mercosul. Em termos práticos, o assunto que temos de discutir hoje é qual seria o apoio que a Argentina precisa: um empréstimo de dólares. O Banco Central brasileiro poderia emprestar dólares ao Banco Central da Argentina. É muito mais efetivo do que as declarações. O que fazem os países quando precisam de reservas? Vão ao FMI, coisa que Argentina prometeu nunca mais vai fazer.
DINHEIRO – As montadoras automobilísticas, no Brasil, tentaram uma operação com os bancos....
SICA – Sim, mas com bancos comerciais. Não com mecanismos oficiais. Era muito light.
DINHEIRO – O sr. presta consultoria a empresários brasileiros. O que eles pensam?
SICA – Estão muito preocupados. A preocupação dos empresários brasileiros é a mesma dos argentinos. Os empresários argentinos não torcem por um calote. Quando aumenta a incerteza e a expectativa muda, os investimentos freiam, o nível de produção é afetado.
DINHEIRO – Houve erro nas negociações que impuseram a cláusula Rufo?
SICA – Foi uma cláusula que, naquele momento, foi necessária para pressionar os credores a entrar no acordo. O grande erro foi não ter deixado aberta a possibilidade dos holdouts entrarem. Era claro que esses abutres não tinham interesse em entrar no acordo, mas se a Argentina tivesse deixado em aberto, talvez não tivesse dado argumentos ao juiz para essa sentença. A Argentina deu a entender que não ia pagar nunca.
DINHEIRO – Como o sr. já mencionou, além do default, há uma crise na Argentina. Como resolver os problemas econômicos do país?
SICA – A Argentina tem conta-corrente negativa, déficit fiscal, alta inflação e recessão. Com o default, o quadro se agrava. É preciso ter um programa macro de estabilização, que contemple medidas como reduzir o déficit fiscal ou financiá-lo genuinamente, melhorar as exportações e captar dólares, ajeitar a política energética, para ter taxa descendente de inflação. É impossível conviver com uma economia com inflação de 30% por muitos anos. O déficit fiscal de quase 4% do PIB é o problema mais grave que temos.
DINHEIRO – Como se chegou a essa situação?
SICA – A Argentina passou de uma situação de superávit duplo (conta-corrente e fiscal) para uma de déficit duplo. Isso foi produto de uma política que impulsionou muito o consumo e da má administração da política energética, que manteve congeladas as tarifas, o que fez o consumo subir e a produção cair. A Argentina começou a importar energia e destruiu sua conta-corrente e, como importa caro para vender barato, isso acabou com o superávit fiscal. E como financiou essa diferença? Financiou o déficit de conta-corrente com reservas e o déficit fiscal com inflação. Pensavam que essa política chegaria a 2016 e não alcançou.
DINHEIRO – Quanto tempo vai levar para recuperar a confiança?
SICA – Tudo depende da confiança política. Agora, isso só se reconquista com as eleições.
DINHEIRO – O Brasil ficou muito dependente da Argentina?
SICA – O principal mercado para as exportações do Brasil, nos últimos anos, foi a Argentina. A partir de 2011, as empresas brasileiras foram buscar outros mercados. O problema é que, em alguns setores, a concentração é intensa e a mudança leva tempo. São as consequências de se integrar. O Brasil acabou se concentrando mais lá, não por uma decisão racional, mas sim pela falta de competitividade.
DINHEIRO – O calote pode afetar as relações entre os dois países?
SICA – Estamos unidos pela geografia. Episódios como o calote são um minuto na nossa vida. Estamos unidos pela história, pelo futuro. Brasil e Argentina têm todos os produtos que o mundo vai demandar nos próximos 20 anos. É claro que há temas para se avançar. Precisamos fortalecer as cadeias produtivas regionais, que são escassas, e de maiores conectividades terrestre,e energética.